REPORTAGEM DA REVISTA ÉPOCA DE 10/07/2018 CORROBORA NOSSOS ACHADOS.
saúde
Especialista na indústria dos tratamentos contra dependência química nos
EUA, a jornalista Gabrielle Glaser chama os Alcoólicos Anônimos de
“irracionais” e diz que seus métodos se baseiam mais em religião que em ciência
RAFAEL CISCATI
10/07/2018 - 06h00
- Atualizado 11/07/2018 19h35
Gabrielle
Glaser (Foto: STEPHEN ENGELBERG/CORTESIA SIMON & SCHUSTER)
1. A senhora afirma que o sistema
usado para tratar dependência em álcool e drogas nos EUA é ineficiente. Por
quê?
Porque todo o nosso sistema de
reabilitação é baseado nos preceitos dos Alcoólicos Anônimos (AA), um grupo
criado nos anos 1930 que prega a abstinência e tem forte viés religioso. A taxa
de sucesso dessa estratégia é baixíssima. Gira em torno dos 5%. Mesmo assim,
essa indústria se agigantou. Hoje, movimenta cerca de US$ 35 bilhões nos
Estados Unidos. Os únicos que ganham com isso são os donos das clínicas de
reabilitação.
2. Como funciona o tratamento
oferecido nessas clínicas?
A ideia em voga é que a pessoa deve passar 28 dias internada, sem consumir álcool ou drogas. É um momento de desintoxicação. Durante esse período, ela deve seguir os 12 passos descritos pelos Alcoólicos Anônimos no que é conhecido como O grande livro. Trata-se de um livro publicado em 1939 — e que orienta os tratamentos ainda hoje. Cinco desses 12 passos mencionam Deus. E, francamente, a maioria deles lembra uma oração. O livro entende o alcoolismo, ou o vício em outras drogas, como um sinal de fraqueza moral. Para superar o problema, e manter-se sóbria, a pessoa deve render-se à autoridade divina. Ora, isso não é ciência. Isso é religião. Essas clínicas cobram US$ 40 mil mensais de seus pacientes. Mas não vendem ciência. Elas vendem um conjunto de crenças.
A ideia em voga é que a pessoa deve passar 28 dias internada, sem consumir álcool ou drogas. É um momento de desintoxicação. Durante esse período, ela deve seguir os 12 passos descritos pelos Alcoólicos Anônimos no que é conhecido como O grande livro. Trata-se de um livro publicado em 1939 — e que orienta os tratamentos ainda hoje. Cinco desses 12 passos mencionam Deus. E, francamente, a maioria deles lembra uma oração. O livro entende o alcoolismo, ou o vício em outras drogas, como um sinal de fraqueza moral. Para superar o problema, e manter-se sóbria, a pessoa deve render-se à autoridade divina. Ora, isso não é ciência. Isso é religião. Essas clínicas cobram US$ 40 mil mensais de seus pacientes. Mas não vendem ciência. Elas vendem um conjunto de crenças.
3. Os AA fazem parte da cultura
americana. Se esses programas não funcionam, por que alcançaram tamanha
popularidade?
A história é sinuosa. No final dos
anos 1930, havia dois homens que bebiam muito. Eles recorreram aos ensinamentos
de um sistema religioso evangélico chamado O Grupo de Oxford. Esse grupo
advogava que para superar o vício — uma falha moral — era preciso procurar
Deus. Isso deu origem aos AA. Na época, os médicos nos Estados Unidos estavam
ocupados tratando de doenças infecciosas. Os antibióticos começariam a ser
usados nos anos 1940, e pouca gente se ocupava de buscar formas de tratar o
alcoolismo. Os AA surgiram num momento em que a estratégia que eles ofereciam
era, de fato, a melhor solução disponível. Rapidamente, o grupo se firmou na consciência
popular. Tinha a vantagem de oferecer ao público algo que todos adoramos — uma
narrativa redentora.
4. No Brasil, pessoas são internadas
em comunidades terapêuticas para tratar de dependência química. O governo
anunciou que pretende investir R$ 87 milhões nessas instituições. O dinheiro
público pode ser mais bem gasto?
Os governos deveriam investir em estratégias
que funcionam. A religião é um instrumento ótimo e poderoso se você for uma
pessoa religiosa. Você investiria em uma igreja que prometesse curar o câncer
por meio da oração? Um modelo interessante para servir de referência é o das
políticas de redução de danos, empregadas em alguns países europeus. Outra
coisa que se mostrou muito eficiente é a Terapia Cognitiva Comportamental. Ela
reduz a intensidade e a frequência com que as pessoas bebem ou consomem
substâncias desse tipo.
5. De que se trata a redução de
danos?
As estratégias de redução de danos
entendem que, por vezes, o melhor é permitir que as pessoas encontrem formas
seguras de usar drogas. Ou que é mais eficiente oferecer uma nova droga em
substituição a substâncias nocivas. Na Finlândia, por exemplo, pessoas com
problemas de alcoolismo são tratadas com um comprimido chamado naltrexona. O
objetivo não é que elas se tornem abstêmias. A mensagem é: “Tome a pílula uma
hora antes de beber, e você beberá menos”.
6. Organizações internacionais, como
a Organização Mundial da Saúde (OMS), defendem a redução de danos como um
método melhor que a mera abstinência para tratar dependência química. Por que
há resistência à estratégia?
As pessoas têm uma noção equivocada
de que redução de danos é algo nocivo. Tome o exemplo de Portugal. O país a
adotou ao perceber que criminalizar o consumo de drogas provocava mortes. As
pessoas não apoiam a redução de danos porque o vício ainda é estigmatizado.
Resiste a ideia de que lidamos com uma falha moral. Apesar de a ciência
demonstrar, repetidas vezes, que reduzir danos é uma estratégia eficiente.
7. O que mais a surpreendeu ao
investigar a “indústria da rehab (reabilitação)”?
A falta de preparo das pessoas que
trabalham nesses centros. Eu sou do Oregon. Em meu estado, uma manicure precisa
passar por mais horas de treinamento do que um funcionário de clínica de
reabilitação. Os AA defendem que somente pessoas que passaram pelo programa
podem ajudar outros pacientes a superar os próprios problemas. São pessoas sem
qualquer formação médica.
8. No Brasil, há relatos de
maus-tratos em comunidades terapêuticas. O mesmo acontece nessas clínicas?
Sim. Há relatos de pessoas que foram
espancadas ou de pacientes que sofreram abuso sexual. Quem vai a uma clínica de
reabilitação está vulnerável e fica à mercê de quem está no poder.
9. Os métodos usados nas clínicas de
reabilitação americanas começam a ser questionados. Há mudanças no horizonte?
Não acho que o cenário deva mudar tão
cedo. Há novas vozes, porém, se erguendo contra esse sistema. É um progresso em
parte motivado pela crise que os EUA vivem em relação aos opioides. São drogas
muito mais mortais que o álcool. A pessoa que passa um mês na reabilitação não
aprende a lidar com o desejo por consumir essas substâncias. Ao deixar a
clínica, volta a usar a droga, nos mesmos níveis em que usava antes do
tratamento. Mas o corpo perdeu resistência. A pessoa morre por overdose. A
rehab está matando essas pessoas.
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