Não há absolutamente novidade alguma nos métodos persuasivos da entidade carismática fundada por Bill, que pede mente aberta para entregar sua vontade e sua vida aos cuidados de Deus. Isso evidentemente significa levar uma vida religiosa como terapia para a dependência de álcool. Toda religião pede o mesmo. A persuasão empregada pela entidade é rigorosamente um predicado bem característico do fundador, que aliás, conforme disse Tom o amigo de Bill, este e o A.A. são indissociáveis, não se pode separar um do outro.
Para asseverar o sentido do que falamos, ao final do segundo parágrafo deste terceiro passo, Bill mostra a chave do programa. Diz ele que “a eficiência de todo programa de A.A. dependerá de quão bem e sinceramente tenhamos tentado chegar à decisão de ‘entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos’”. Assim, não se pode contestar, sob nenhum argumento, que o programa de A.A. será tão eficiente quanto o for a intensidade religiosa do postulante. Ou também, poderá ser dito em outras palavras que a eficiência do programa de A.A. reside unicamente na capacidade de aceitação do dogma religioso pelo adepto.
Assim sendo, A.A. poderia ser substituído com vantagem por qualquer religião tradicional. Com vantagem, porque além de ter mais tradição no trato teológico, com rituais mais elaborados e dogmas até seculares, os templos dessas religiões, que pensamos, são bem mais adequados às praticas religiosas, se comparadas às insalubres salas de reuniões de A.A. Nestas, o ar saturado pelos milhares de substâncias tóxicas do cigarro envenenam os frequentadores. Ironicamente Bill morreu de enfisema pulmonar devido ao cigarro, que é permitido ser fumado nas reuniões de A.A. Em cada cadeira (nas salas de A.A. que conhecemos) há um cinzeiro. Entraremos nesses detalhes alhures.
Evidentemente que estamos apenas comparado as vantagens das outras religiões tradicionais em relação a A.A., nunca, indicando quaisquer delas como terapia para a dependência de álcool. A religião nunca poderá ser substituta das terapias médicas modernas, contudo, nada impede que o dependente faça opção por qualquer uma delas, como parte de sua vida, enquanto pessoa humana. A religião deverá ser vista com os mesmos olhos do cidadão comum, que a avaliará (inclusive como opção e conveniência) com os mesmos critérios que qualquer cidadão livre merece e deve possuir.
Depois de persuadir o postulante a adepto do A.A. para abrir sua mente à doutrinação, eis que celeremente mostram o que será deste individuo depois de consumada sua adesão a esta entidade, pois na sequência de sua exposição sobre o Terceiro Passo, Bill diz: “Reconhecemos que a palavra ‘dependência’ é tão repugnante para muitos psiquiatras e psicólogos como para os alcoólicos. Como nossos amigos profissionais, estamos cientes de que existem formas erradas de dependência, e experimentamos muitas delas. [...] Justamente esta forma errada de dependência tem levado muitos alcoólicos rebeldes a concluir que qualquer tipo de dependência é intoleravelmente prejudicial. Mas, a dependência de um grupo de A.A. ou de um Poder superior jamais produziu qualquer efeito pernicioso.” (Os Doze Passos, p. 28-29)
É irrefutável a proposta de adesão à dependência de A.A. e ao Poder Superior de Bill nestas palavras acima. O programa de A.A. se redunda à dependência a irmandade. Ao feitio de Bill, que o leitor já está familiarizado, ele distorce os fatos, e o que é seu pensamento ele acaba por dizer que são dos psicólogos e psiquiatras.
Começa dizendo que os “amigos profissionais psiquiatras e psicólogos” entendem que a dependência é repugnante, mas logo a seguir, sutilmente, distorce essa assertiva ao afirmar que esses profissionais estão cientes que existem formas erradas de dependência. Induz daí que possa haver na concepção desses psicoterapeutas uma dependência “correta”. Haveria por parte desses profissionais, um reconhecimento de duas dependências antagônicas, em que uma seria repugnante e outra plenamente louvável e aceitável. Incrível. É o cumulo da malicia. Nenhum psicólogo e psiquiatra que conhecemos ou que se manifestou publicamente – pelo menos que saibamos -, aventou para essa possibilidade estapafúrdia. Tudo o que vimos até hoje, aponta exatamente para o contrário: que qualquer dependência é patológica.
Bill induziu que somente a dependência de drogas é nociva, e que a dependência à A.A. jamais teria produzido qualquer efeito pernicioso. E diz mais: alcoólicos que concluíssem que qualquer tipo de dependência é intoleravelmente prejudicial são rebeldes. Novamente ele ofende os dependentes, taxando-os de rebeldes caso não aceitem A.A. e o seu Poder superior. Isso é o que a psicologia chama de projeção, pois quem é rebelde e intolerante é Bill, que quer impor uma ideia, e o agravante é que a ideia é implausível. A troca de dependência é redondamente inaceitável.
A droga nem sempre é uma substância química, podendo ser tudo aquilo que provoca dependência e destrutividade, pois droga significa destrutividade e dependência é um pacto destrutivo. Nunca algum especialista abriu uma exceção para algum tipo de dependência ou droga, porque isso é conceito de drogadição.
Só Bill que queria saber mais do que todo mundo veio com essa proposta absurda, ou se fez de bobo para vender seu peixe.
Droga é aquilo que se usa, pratica ou se consume compulsivamente, como o trabalho, o jogo, a comilança, o sexo, a religião, etc. No livro Obesidade, de Sálvio F. Maciel, é informado que “As adicções seriam vistas como: adicção a drogas (drogas químicas) e adicção sem drogas (drogas não-químicas, como, por exemplo, o roubo, o jogo, sexo, trabalho, mentira, entre outras, e, no nosso caso, a comida). Os comedores compulsivos seriam então, adictos à comida.”
Lembramos aqui que dependência é sinônimo de adição (Nota de rodapé nº 88), que significa “escravidão”, e que dependente de álcool e outras drogas é adito (adicto em latim), que por sua vez significa “escravo”. Então não existe isso de escravidão repugnante e escravidão boa; toda e qualquer escravidão é abominável, ainda que queiram imiscuir que se trata de uma escravidão a um Poder superior, e que por isso, seria plenamente louvável. Sigmund Freud disse, citando Carl Max, que “a religião é o ópio do povo”, no entanto, não sabemos se ele quis dizer isso no mesmo sentido em que o dissemos. Como o pai da psicanálise intuía profundamente sobre a mente humana, citamo-lo por achar que a relação proposta é plenamente compatível. Pois aqui mais do que nunca a dependência a uma religião a qualifica como droga.
Lembramos mais, outra passagem do nosso livro Dependência de Álcool, página 35: “Cabe, no caso do paciente acometido pela dependência do álcool, conhecer e assumir as rédeas de sua terapia. O que poderia acarretar uma verdadeira calamidade, devido à falta de conhecimentos sobre o assunto, acaba por se tornar um verdadeiro privilégio, desde que ele não se encarregue de desempenhar essa tarefa sozinho. Para arcar com essa incumbência é necessário um plano de ação, um programa para recuperação bem elaborado e partilhado. Sozinho dificilmente alguém conseguiria obter sucesso. Na verdade existem muitos que conseguem isso sozinhos, mas estes acabam perdendo muito em qualidade de vida. Há ainda muitos outros que aderem a programas que são verdadeiras dependências, ficando assim naquele refrão que diz: “sair da dependência das drogas e cair na dependência do programa”, o que verdadeiramente é uma troca de uma droga pela outra.
O dependente de álcool e, por extensão, de qualquer droga, precisa é, acima de tudo, se libertar. Libertar-se verdadeiramente de quaisquer escravidões, afinal o que ele precisa é livrar-se da condição de adito, que, como já vimos, significa “adjudicar a outrem para ser usado como escravo”. Chega de armadilhas, queremos ser absolutamente livres.”
Trocando em miúdos, o que Bill propõe na verdade é a troca da dependência do álcool pela dependência de “seu programa”, e aceitando ainda a adição ao cigarro, já que é permitido o uso de tabaco em A.A. E sobre os dependentes de álcool que não param de fumar aqui vai um alerta: sabemos que eliminando a compulsão pelo álcool ela desaguará noutra forma de adição que, se já existe, será potencializada – se não for devidamente tratada. É perfeitamente observável na proposta de Bill, que há arroubos de que houve liberdade ao se afastar do álcool. Contudo se persiste outra dependência, a escravidão continua, havendo neste caso apenas redução de danos. Em última instância, compreendemos Bill ao deparar com uma frase de Eduardo Kalina (Nota de Rodapé 89): “Deveríamos nos perguntar por que é que são tão numerosos, em nossos dias, os que preferem o sonho da liberdade à liberdade propriamente dita.” (Drogadição Hoje, p. 124) Na verdade, aquele que é dependente cruzado (dependência por mais de uma droga), ao se livrar de uma delas apenas, transferiu todos os estigmas de uma dependência para a outra – continuando com todas as afetações físicas, mentais e psicológicas inerentes à doença. No caso de Bill, ele não apenas continuou com a compulsão, como ainda arranjou outra droga para alimentá-la, a LSD, querendo que os demais membros de A.A. seguisse seus passos com mais essa adição – embora a LSD não provoque a dependência, para quem já é dependente vale dizer que é mais escravidão. Outro pensamento citado nesse capitulo do livro, de Kalina (do qual extraímos a frase acima), que cai como uma luva aqui, é de autoria de R. D. Laing, que diz sobre essas escravidões que homens impõem a outros homens:
Somos homens em potência, mas nos achamos em estado de alienação e este estado não é simplesmente um sistema natural. Para que a alienação seja nosso destino atual é preciso uma violência atroz, perpetrada por seres humanos contra seres humanos. Nem sequer somos capazes de pensar apropriadamente sobre uma conduta que está à beira da aniquilação. Mas pensamos menos do que sabemos; sabemos menos do que amamos, e amamos muitíssimo menos do que existe. E, justamente, é nessa medida que somos muito menos do que somos. (DrogadiçãoHoje, p. 118)
Outro trecho do livro de Kalina que não poderíamos deixar de citar, está no capitulo intitulado “Cura versus aperfeiçoamento”, quando ele fala do individuo que deixou de usar drogas, “em qualquer de suas formas ou vias”, fazendo surgir a personalidade básica do dependente, sem a máscara que a droga lhe confere: Emerge sua fragilidade, sua impotência, seu vício existencial, sua condição de ser quase, ou diretamente, um incapacitado para viver por si mesmo. Em outras palavras, sua incapacidade de criar um projeto de vida próprio.
Neste ponto, o adito encontra-se com o perigo daqueles grupos que lhe oferecem soluções feitas (ready made). Refiro-me às religiosas, seja das religiões aceitas ou majoritárias, ou a dos grupos pseudorreligiosos, esotéricos, político-fascistas, etc., pois não lhe oferecem capacitação para escolher um caminho de liberdade, para que depois ele decida por onde transitar, mas buscam captar adeptos, leia-se adictos, e isto não é, a meu critério, um caminho de cura, senão uma estruturação caracterológica, que funciona como uma prótese, que sanciona sua incapacitação definitiva como homem livre. (Drogadição hoje, p. 197-198)
É possível enxergar tudo isso no programa de A.A. (senão o próprio), proposto por Bill, notadamente no Terceiro Passo, cujo trecho final diz que somente é possível praticar com êxito os demais passos, depois de obter êxito nesse terceiro passo, mediante determinação e persistência. Se alienar definitivamente. O que estamos gastando um livro inteiro para explicar, Kalina o faz em um único parágrafo.
N. R. 88:
Conforme enunciado, em outra obra de nossa autoria, adição é um termo recente, largamente usado em medicina e que deriva de adicção, que por sua vez, vem de adicto. Adicto (Dicionário Houaiss): lat. addictus,a,um ‘adjudicado ao seu credor, como devedor insolvável, p. ext. submisso, escravizado’, part.pas. de addicere ‘dar o seu assentimento, aprovar, adjucar (em lanço), vender; adjucar a pessoa do devedor ao credor, para que este use daquela como seu escravo’ (jur); já substv., no próprio lat. addictus,i (form. a partir do part.pas.) ‘escravo por dívidas’; o subst. Foi doc. em Plauto, numa peça que se perdeu.
N. R. 89
Kalina é psiquiatra clinico, com mais de quarenta anos de clinica quando escreveu o mencionado livro, professor, diretor e membro de vários organismos internacionais especializados, e diretor médico de renomadas clinicas de recuperação em Buenos Aires e São Paulo.