VISITANTES Greda - Grupo de Recuperandos da Dependência de Álcool / Luiz Alberto Bahia: Forjando um mito

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Forjando um mito



Uma das ideias que Bill absorveu de Jung trouxe sérias consequências para todos os dependentes de álcool, que padecem até os dias de hoje, devido às implicações advindas dela. Essa ideia foi a afirmação irresponsável de que a doença da dependência de álcool é espiritual, ou de origem espiritual, propagada pelo A.A., que Jung endossou. Como veremos adiante, Jung fez isso na carta que respondeu a Bill, propondo uma premissa completamente forçada. Os endossos e afirmações de Carl Jung, nesse sentido, nos fazem entender o porquê das indignações de Richard Noll com as ideias sem fundamento que ele divagava, sempre danosas para a ciência. O pior são as terríveis consequências dessas divagações ilógicas, para milhões de seres humanos. No caso do inconsciente coletivo e dos arquétipos, as consequências apontadas com muito equilíbrio e autoridade por Noll, ainda que muito danosas, ficam minúsculas perto desta desqualificação da doença, feita por Jung. Desqualificar a doença de biológica para espiritual, distorcendo sua causa, desvirtua também a terapêutica para a dependência de álcool, provocando enorme prejuízo para milhões de dependentes.
Com o oportunismo peculiar, destacado ao longo de todo o livro O culto de Jung, por Noll, o teórico suíço aproveita-se das insinuações descabidas de Bill para imiscuir suas teorias. Antes de dizê-lo a Bill na carta, porém, justificou-se que não havia transmitido a Rowland um aspecto de sua recomendação, porque havia descoberto que estava sendo mal interpretado no que dizia. Depois de dizer a frase “A sua fixação[1] pelo álcool era o equivalente, em nível mais baixo, da sede espiritual do nosso ser pela totalidade, expressa em linguagem medieval, pela união com Deus”, ponderou com esta outra frase: “Como poderia alguém expor tal pensamento sem ser mal interpretado em nossos dias?”. Bem, na primeira frase, Jung começa com um absurdo, ao dizer que dependência de álcool é fixação. Ainda que dissesse ser uma fixação oral, não concordaríamos, pois hoje se sabe que a dependência de álcool advém de várias causas combinadas. E depois reporta sua teoria “helenística, indo-ariana”, que ele chama de linguagem medieval, ao dizer que a dependência de álcool seria a “sede espiritual do nosso ser pela totalidade” – pela união com Deus. Ele, sim, ao criar uma teoria teológica, mostra sua fixação em criar uma religião. Uma religião para poder se salvar, diga-se de passagem. Sua busca frustrada em ser uno com Deus, ter Deus dentro de si, conforme já vimos. Ou seja, além de ordem espiritual, a dependência seria espiritual no nível do inconsciente coletivo. Um disparate!
Ninguém é alcoólico por ter sede espiritual pela totalidade. Por não ser uno com Deus. Isso não passa de retórica completamente destituída de razão, e isso está mais para crendices preconceituosas medievais. A dependência de álcool, conforme veremos no capítulo “A doença”, conta com dez CIDs catalogados pela OMS, e nenhum deles, envolve crenças religiosas. E depois Jung ainda vem dizer, ao que expor tais pensamentos naqueles dias, estaria sendo mal interpretado. Mesmo nos dias atuais, Jung não está sendo mal interpretado; ele está sendo bem interpretado, ainda que isso signifique considerá-lo como um tremendo presunçoso e tendencioso, como bem mostra Noll. Com os conhecimentos científicos atuais sobre a dependência de álcool, fica muito mais fácil “bem” interpretar Jung hoje, e constatar toda a sua ardileza. Toda a sua infeliz especulação.
Lembrem-se de que Jung afirmou que o inconsciente coletivo conteria toda a herança espiritual da evolução da humanidade, e essa sede espiritual a que Jung se reporta é herança que não se originou hoje. Com isso, Jung fez uma associação completamente oportunista, sem nenhum embasamento, coisa de se lamentar profundamente. E depois, ao afirmar que “expor tal pensamento sem ser mal interpretado em nossos dias” equivaleria a ter pretensões proféticas, um visionário futurista. Mas como dizem, o tempo é o senhor da razão: suas palavras em nossos dias, não só denotam seu equívoco, como também o esvazia de suas pretensões como profeta e salvador. Nesse ponto se iguala a tantos outros fanáticos que propuseram a salvação (redenção) de seus seguidores, mas em vez disso, acabaram por arruiná-los. Contudo, o que é pior mesmo é o estrago que essa ideia infeliz, açambarcada por Bill, vem provocando em milhões e milhões de dependentes de álcool ao longo desse tempo todo, o que explicaremos no momento oportuno. Jung consegue desagradar a todo mundo, à exceção de seus fiéis seguidores, evidentemente. Porque a ideia teológica de Jung - farsa na opinião de Noll - bate frontalmente contra qualquer lógica ou possibilidade.
Logo abaixo, depois de explicar ainda mais, de maneira preconceituosa e discriminatória, como um ser humano contrai a dependência de álcool, Jung conclui apoteoticamente, aguçando ainda mais suas conjecturas ilógicas, ao explicar: Veja você, “álcohol” em latim significa “espírito”, e você, no entanto, usa a mesma palavra tanto para designar a mais alta experiência religiosa como para designar o mais depravador dos venenos. E em seguida acrescenta: A receita então é “spiritus” contra “spiritum”.
A conceituação de Jung é inepta, desprovida de qualquer conteúdo objetivo ou pragmático. Para nós, essas alegações são pura semântica, com o único intuito de justificar sua proposição para a teoria da doença espiritual de origens reportadas ao inconsciente coletivo. Semântica, porque dizer que alcohol em latim significa “espírito” é apenas uma questão de linguística, um jogo de palavras, já que etimologicamente a palavra álcool vem do árabe al-kuhul[1]. Não só a palavra, mas também a própria bebida e o alambique são de origem árabe. Embora haja vestígios arqueológicos dando conta de que os egípcios tenham produzido um aparelho parecido com o alambique, esse equipamento, como é conhecido, só foi desenvolvido no ano de 800 D.C. pelo alquimista árabe Jabir ibn Hayyan. A própria palavra alambique vem do árabe “al ambic” cujo significado vem de “algo que refina, que transmuta”.
No século X, o astrônomo, médico e filósofo árabe,[1] de nome Abu Ali al-Husain ibn Abdallah ibn Sina, ou simplesmente Avicena (980-1063), inventou o processo de destilação a partir da bebida fermentada. O resultado da destilação, em sua maior parte, é o álcool etílico, e a forma de bebida destilada. Al-kuhul originalmente significava “fina poeira”, referindo-se ao antimônio, que era cosmético usado pelos egípcios. Posteriormente passou a designar qualquer “essência”, como o álcool. Donde “essência” pode ter passado a significar “espírito”, em latim, uma vez que essência poderia significar “exalação”, como veremos logo abaixo.
Ainda com respeito à origem da bebida e da palavra álcool, num trabalho assinado por Marcus Valério XR (1971), disponível em www.xr.pro.br/Ensaios/Drogas.html, ele informa que: “No entanto para eles (árabes)[1] a palavra atualmente é Al-Ghawl, em inglês The Ghoul, literalmente ‘o espírito/fantasma’. O próprio Alcorão contraindica fortemente o uso de álcool, e sendo assim, os mulçumanos são abstêmios. Talvez isso seja devido à percepção que os árabes têm de seu próprio vocabulário. Eles foram os precursores do Álcool, e também os primeiros a abandoná-lo. E de acordo com uma interpretação comum no Islã, similar a interpretações comuns na Bíblia, esse ‘espírito’ no caso, AL-GHAWL, pode ser traduzido como: O DEMÔNIO” (sic).
Como se pode notar, o espírito que se refere à origem da palavra não significa “a mais alta experiência religiosa”, e sim coisas de “conteúdo” mundano mesmo e, se se quiser usar essa palavra para se referir às coisas transcendentais, certamente se remeteria a fenômenos fantasmagóricos ou demoníacos.
A palavra álcool em latim não tinha um significado original ou tradicional, e só foi incorporada ao vocabulário daquela língua nos tempos modernos. Ao que nos parece, estava ligada à sua condição química de volatilidade, na relação exalação-essência, e a partir daí, a uma significação relativa ao álcool propriamente dito. Para corroborar nossas suposições, fizemos um perípato por bibliotecas públicas e particulares, e podemos assim resumir o teor dessas pesquisas como segue.
Nos dicionários publicados até a data da correspondência entre Bill e Jung, consultados (em todos eles), tanto nos Latim-Português quanto nos Português-Latim, não encontramos a palavra álcool. Nos dicionários Latim-Português, há praticamente um consenso, ao se constatar o significado da palavra spiritus, que adiante podemos assim exemplificar:
SPIRITUS, -ús, subs. M. I – Sent. próprio: 1) sopro, vento, hálito, respiração, exalação (Verg. Em. 12, 365). Daí: 2) O ar (Cic. Amer. 72). II – Sent. Figurado: 3)  Suspiro (Hor. Epo. 11, 10). 4) Inspiração, sopro divino, gênio, espírito criador (Hor. O. 4, 6, 29). 5) Espírito, sentimento (T. Lív. 2, 35, 6). 6) Ira, cólera, arrogância, orgulho, presunção (Cic. Phil. 8,24). 7) Espírito, alma (Ov. Met. 15, 167).
O dicionário mais recente que tivemos acesso foi o Dicionário de Latim- Português, da Porto Editora, de Portugal (2ª edição, de 2001), cujos significados para a palavra spiritus são bem mais amplos, e nem por isso, entre elas encontra-se a palavra álcool.
Já nos dicionários Português-Latim também não encontramos a palavra álcool, e onde poderia se encontrá-la, caso existisse, encontram-se as duas palavras (seria entre elas, portanto): ALCÔFA e ALCOVA. No Dicionário de Português-Latim, da Porto Editora (2ª edição, de 2000), entre as palavras alcofa e alcova aparecem ainda as palavras alcoice, alcorcova e alcouce. Na nossa pesquisa sobre a bebida ou o hábito de beber, nada foi constatado que as relacionasse a spiritus, conforme segue abaixo.
BÊBEDO, adj. Ebrius,a,um; vinolentus,a,um; temulentus, a, um; vinosus,a,um; tudo retumbava com os gritos dos bêbedos: personabant omnia vocibus ebriorum: palavras de bêbedo : ébria verba; olhos lânguidos (de quem bebeu muito) : ebrii oculi.
BEBEDOR, s. m. Potor,oris; potator,oris; vinosus,i; aquele que gosta de beber: bibendi avidus; bebedor de vinho : vini potator ou bibo, onis.
BEBER, v. t. e i. Bibere; potare; hourire; beber vinho: bibere vinum; beber de um só trago: bibere pro summo; água boa para beber: aqua idônea potui; beber até perder a noção das coisas: vino se sepelire.
BEBERAGEM, s. f. Potus. Us; beberagem medicinal: potus medicus.
BEBERICAR, v. t. e i. Sorbillare; potitare.
BEBIDA, s. f. Potio.onis; potus, us; dar alguma bebida para tomar: dare aliquid potui.
(Dicionário Português-Latim, p. 98 e 43).

Apenas conseguimos encontrar a palavra álcool, correlacionada a spiritus - numa suposta etiologia, que acima postulamos -, no livro Sintaxe Latina, coincidentemente publicado em 1961, portanto, novíssimo para todos daquela época, inclusive para Jung. Naquele livro, cujo capítulo tem como título “Vocabulário de termos mais usuais e modernos”, em que constam várias palavras modernas para a época, tais como aeroporto (aeroportus, us; aerodromus, i.) ou Altofalante (megaphonium, ii; vocis amplificator, oris.), deparamos com a exegese:
Álcool, spiritus, us, m.; potior vini sucus; praecipuum vini elementum.

Assim, diante dos fatos e documentos, podemos seguramente afirmar que a colocação feita por Carl Jung foi forçada. Forçada intencionalmente para forjar uma realidade que seria incontestável, e a partir daí construir uma frase de efeito que, com esse suposto lastro endossante, pudesse significar uma verdade científica. E que acima de tudo, fosse plenamente coadunada com sua teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos, para ele, cientificamente perfeita e incontestável, contudo, taxada brilhantemente por Richard Noll como uma aberração ética, uma das maiores farsas que a humanidade já viu.
Assim como Noll vê a farsa protagonizada pelo Jung, num intrigante emaranhado de manipulações intelectual e cuidadosamente articuladas, ele chega a citar o seguinte trecho em seu livro: “A história simplesmente não é o pão dos fiéis, e é mesmo verdade que ‘o mundo quer ser enganado’, como certa vez disse Jung a um colega que pusera em dúvida suas alegações” (NOLL, 1996, p. IX). Pode-se até dizer que a maioria das pessoas quer ser enganada, mas generalizar de tal forma é arroubo. E mais, há muita gente que ama a verdade e busca-a com afinco. Agora, dizer tal disparate, vindo de alguém que se intitula como cientista, é no mínimo aético.
Vimos que Bill não agiu muito diferente de Jung, e mais adiante, vamos mostrar uma síntese de suas insinuações induzindo que ele era messiânico. Ambos protagonizaram (ainda que não protocolar, como está demonstrado nas cartas) um pacto tácito de endosso e apoio mútuo. O objetivo seria a potencialização recíproca para a ascensão de seus movimentos carismáticos, em que apenas eles (seus beneficiários e correligionários) ganharam, à custa do sofrimento e engano de milhões de seres humanos. O caso de Bill, em termos de danos a terceiros, é ainda bem maior, porque engana não só os adeptos do A.A., como ainda ajuda a estigmatizar os outros 99,7% (aproximados) de dependentes de álcool que não aderiram a essa entidade dogmática. O estigma de Bill e A.A. faz com que um extraordinário contingente de dependentes desista até mesmo de procurar outros caminhos para se tratar. Parece que não foi um mero acaso a aproximação dos dois; ambos tinham personalidades, mentes e objetivos afins. Infelizmente.
Richard Noll, por várias vezes em seu livro, observou que as teorias de Carl Jung tinham em primeiro plano o objetivo de se contrapor ao cristianismo que ele tanto odiava[1]. Ao associar ardilosamente o álcool a uma dicotomia dialética ao estilo platônico, esse álcool “que tanto podia designar a mais alta experiência religiosa ou o mais depravador dos venenos”, Jung bem provavelmente pretendia (além do pacto subentendido com Bill) alfinetar o cristianismo. Isso se daria através da depreciação de um dos sacramentos preconizados por Jesus Cristo na última ceia, a ingestão de vinho, e que é parte dos rituais de algumas religiões cristãs, principalmente da Igreja Católica, representado pelo sacramento da comunhão na missa.
Lembrem-se os leitores das citações que fizemos das páginas 207 e 208 do livro O Culto de Jung. Repetiremos aqui dois pequenos trechos:
 “Penso que precisamos dar à psicanálise tempo para infiltrar-se entre pessoas de muitas áreas, reviver entre os intelectuais o sentimento do símbolo e do mito, aos poucos retransformar Cristo no profético deus da vinha e, por aí, assimilar as arrebatadoras forças instintuais do cristianismo, com o único propósito de fazer do culto e do mito sagrado o que eles já foram: um festim bêbado de alegria em que o homem recupere o etos e a santidade do animal [o grifo é nosso]. Era essa a beleza e o objetivo da religião clássica, e só Deus sabe quais necessidades biológicas passageiras a transformaram num Instituto da Aflição.” [...] “precisa surgir dentro do cristianismo, converter em realidade seu hino de amor, a agonia e o êxtase em face do Deus morto e renascido, o poder místico do vinho, a impressionante antropofagia da Última Ceia – só esse desenvolvimento ético pode desempenhar o papel das forças vitais da religião”.
Vejam até onde Bill meteu os dependentes de álcool. Bill não conhecia Jung nem a sua forma de abordagem aos dependentes de álcool, mas achou que poderia criar algo de novo que o colocasse no centro do palco. Não só conseguiu como ainda provocou, com suas mirabolantes ideias, meter os dependentes no antigo ódio de Jung pelo cristianismo. E este não hesitou em criar um silogismo malicioso para atiçar os dependentes na sua louca disputa religiosa. Antes de prosseguir no esclarecimento da querela de Jung com os cristãos, é preciso destacar um importante fenômeno que se constata: a facilidade como um líder enfia empulhação na cabeça de seus seguidores, partidários ou correligionários. Neste caso de Bill, a aberrante contradição está registrada em um mesmo livro, separada por poucas páginas. As vociferações raivosas de Bill contra Jung, desqualificando-o completamente, estão, como já vimos, no livro A linguagem do coração, nas páginas 114-116, e as bajulações, enaltecimentos e o pseudovínculo, estão registrados nas páginas 325-329, Da parte dele, é muita cara de pau, da de seus seguidores, é cega ingenuidade. Fanatismo.
As pretensões de Jung quanto à fomentação das suas ideações anticristãs são bem explícitas. Na argumentação para Freud, acima, ele diz coisas como infiltrar-se entre pessoas de muitas áreas para “retransformar o Cristo no profético Deus da vinha”. Compara Jesus com Baco ou Dionísio (os deuses do vinho – o primeiro romano e o segundo grego). Compara os cristãos da época com um “festim bêbado”. Relaciona Jesus, o “Deus morto e renascido”, com “poder místico de vinho”, e o último encontro de Jesus com seus apóstolos chama de “impressionante antropofagia da Última Ceia”. Veja que Jung compara a “comunhão” dos católicos com antropofagia, ou seja, canibalismo. É por isso que Jung não se conformava com o irracionalismo religioso. Se Jung não conseguiu (como desejava) infiltrar-se em diversos segmentos da sociedade (sua) contemporânea para plantar suas teorias, com Bill conseguiu-o com extrema facilidade. A sanha de homens inconsequentes como Bill e Jung criou um mito que acabou por se tornar talvez no maior algoz das vítimas do álcool: a estigmatizante doença espiritual.


Desdobramento da relação de Bill com Jung: o caso Wylie

Em conformidade com o que havíamos dito anteriormente, vamos estender esse assunto mais um pouco, esclarecendo a nebulosa relação de Bill com Carl Jung. Neste momento veremos as contraditórias versões que Bill apresentou na avaliação da obra do psiquiatra. Como vimos na sessão anterior, Bill não só apoiava as ideias de Jung, como disse que elas foram fundamentais para estabelecer a ideologia de A.A. Contudo, noutro momento anterior, Bill as abominou e se denuncia por isso. Neste desdobramento do caso Jung, fica notória a ambiguidade de Bill e sua disposição para forjar fatos, iludir e subestimar a inteligência dos outros. Para a consecução desse objetivo, tomaremos como base o livro A linguagem do coração, que convencionaremos chamar pelas iniciais L.C. Este livro é uma obra que reúne artigos escritos por Bill para a Revista Grapevine que, por sua vez, é uma publicação que serve como meio de comunicação oficial de Alcoólicos Anônimos. Nesta fonte de pesquisa deparamos com achados muito importantes, que colocam mais luz nessa questão.
Nossas atenções se voltam principalmente para um artigo em especial, intitulado “Comentários sobre as ideias de Wylie”. O artigo é datado de setembro de 1944, inicia-se ao final da página 114 e vai até a página 116 do mencionado livro. Trata-se do depoimento de um escritor, e Bill diz que era ator, também um ator conhecido. Wylie se livrou do álcool por conta própria, contando com a ajuda de Carl Gustav Jung. Como não precisou de A.A., o feito incomodou Bill, levando-o a exasperar-se. Em seu enunciado, com destaque, se lê: “Em um artigo intitulado ‘Philip Wylie Espeta uma Agulhinha no Convencimento’[1], o renomado autor diz que é um alcoólico que ‘deixou de beber sem ajuda’. Em seguida, cita a psiquiatria e outros recursos científicos como fatores que contribuíram para mantê-lo sóbrio. O que segue é a resposta de Bill.” Antes de descrever o artigo de Bill, vamos transcrever o texto assinado por Wylie, que deu origem à intempestiva manifestação do cofundador de A.A., para se ter uma dimensão mais aproximada do que realmente aconteceu.
Na verdade, Wylie foi convidado pelo editor da Revista Grapevine para escrever um artigo que o encarregado da revista julgava ser de interesse dos adeptos da irmandade. A tarefa foi aceita atenciosamente e elaborada de maneira comedida, dotada de bom senso e tudo dentro dos padrões éticos aceitáveis. No artigo não há nada que pudesse infligir quaisquer regras literárias ou mesmo do relacionamento humano. Contudo, Bill se deixou ferir pelas opiniões de Wylie, já que elas por si só não teriam conteúdo ou motivo suficiente que pudesse magoar alguém. Feriram, sim, a vaidade e os interesses egoísticos de Bill. Na visão externada dele, fica entendido que ninguém, a não ser ele mesmo, teria autoridade para tratar do assunto. Nesta ocasião, mostra mais uma vez que a tarefa de falar publicamente e ter opiniões sobre a dependência de álcool seria monopólio seu e de A.A., ainda que tenha dito diferente. Para Bill, Wylie foi longe demais, mesmo porque, além de ter conseguido resolver seus problemas com o álcool pelos seus próprios meios, ainda se achava no direito de emitir pareceres sobre o assunto. Sobre A.A., a quem inclusive se referiu com respeito, Wylie conseguia passar uma ideia que as pessoas poderiam receber de maneira positiva. Ao tomar conhecimento do texto de Wylie, Bill se deu o direito de rechaçá-lo com muita ironia e autossuficiência, na mesma edição da revista. Vale dizer que aqui, neste caso, que não aparece na biografia autorizada de Bill, não há como dissimular os fatos, pois inexistem biógrafos para enaltecer a “candura” de Bill e sua disposição para aceitar críticas.
Quanto ao artigo de Wylie, publicado pela Grapevine, tivemos acesso a ele pela internet, mediante pagamento de quatro dólares, com o débito no cartão ficando em R$ 7,72, a crédito de GV INC (que deve ser o nome jurídico da revista). Se se levar em conta que esse valor é aproximadamente o equivalente ao preço das melhores revistas periódicas brasileiras de informação, cultura e entretenimento, podemos dizer que o valor pago ao Empreendimento A.A. foi extorsivo. Pagamos este valor só para ter acesso a um único artigo. Aliás, eles não disponibilizam apenas uma consulta; cobram por um período mínimo de um mês, para justificar assim o valor exorbitante. Cobranças essas injustificadas, se forem levadas em conta as alegações de que tudo isso é importante para acudir os dependentes de álcool que sofrem. A.A. possui rendas além do justificável e suficiente, e vender o acesso à revista é apenas mais uma maneira de vender o 12º Passo e de atender aos objetivos reais de faturamento da entidade e seus beneficiários. Pagamos à matriz americana, já que as filiais brasileiras de A.A. não disponibiliza o material, cujo título original é “Philip Wylie Jabs a Little Needle Into Complacency”. O artigo foi gentilmente traduzido pelo professor de Literatura de Língua Inglesa, Luís André Nepomuceno. A livre tradução é a que segue:

Um editor do Grapevine me chamou e me pediu que escrevesse um artigo. Pediu-me porque eu tinha recentemente feito a crítica de um livro sobre alcoolismo, de Charles Jackson, chamado O final de semana perdido. Havia ele pensado que o que eu tinha dito na crítica mostrava que eu revelava interesse por alcoólatras. Eu tenho. O editor não sabia que eu sou um deles. Parei de beber sozinho, e quero com isso dizer que estive sem um grupo organizado como o A.A. para me aconselhar. Mas eu tive muita assistência e conselhos de pessoas experientes no assunto, e que curiosamente se identificam muito com o que sei sobre o A.A. Para chegar a ponto de dizer que parei de beber ou que não bebo há muito tempo, levou anos. Precisei de uma energia inimaginável. E isso me deixou com algumas ideias que eu gostaria de passar adiante, e ainda com algumas suspeitas que eu gostaria de levantar.
As coisas que eu fiz são talvez as coisas que muitas outras pessoas fizeram. Fiz psicoterapia duas vezes. Depois eu mesmo estudei psicologia - junguiana, freudiana, adleriana, behaviourista. Depois li os livros básicos de religião. Depois ainda, filosofia. Por fim, entrei num asilo de loucos, observei-os, e aqui estão algumas ideias que me ocorreram. Uma das razões que dei a mim mesmo para beber foi que eu podia facilmente fazer algumas coisas que eu não faria e que outros homens sóbrios podiam fazer. Eu então comecei a fazer as coisas sobriamente. Fiz sobriamente tudo o que eu fazia quando estava bêbado, com exceção de algumas coisas que me traziam problemas. E isso me foi extremamente útil.
Eu tinha crises de ansiedade que não há palavras para descrever, embora a descrição de Charles Jackson tenha chegado mais perto do que a de qualquer outro escritor. Cada medo, cada fobia, cada compulsão que estava na minha cabeça, e isto não era apenas quando eu estava de ressaca. Então eu peguei o hábito de pôr no papel (sugestão do psiquiatra) descrevendo em detalhes a natureza deste terrível sentimento de aflição. Talvez o fato de eu ser escritor deu a este sistema um mérito especial. Mas descobri que eu não podia acabar com esta horrível obsessão – sentado confortavelmente num quarto tranquilo. No papel, sentia que as coisas não eram tão imensas e opressivas. Tornavam-se uma bobagem. E me fizeram rir de mim mesmo e ganhar confiança.
O próprio Dr. Jung sugeriu que eu observasse alguns asilos. Não entendi por quê, antes de fazer visita a um deles. Ficou claro para mim que meus companheiros definitivamente não eram iguais a mim. Logo eu descobri que meu alcoolismo não era o desencadeador da insanidade, e eu tinha medo precisamente disso.
Os junguianos por acaso dão um nome diferente para a “experiência religiosa” que vocês discutem no A.A. Eles chegam a esta experiência por outros
métodos – métodos que estão em conformidade com a técnica científica e psicológica deles. Eles chamam de “símbolo transcendente” a fração espiritual que gera a própria experiência. Naturalmente não tenho como descrever aqui este método – eu precisaria de um livro para falar sobre isso. Mas não importa se você chama isso de experiência religiosa ou de um símbolo transcendental, e talvez seja do interesse de alcoólatras (que apenas em parte estão envolvidos em objetar contra religiões formais e institucionalizadas) entender que há caminhos totalmente abstratos e não-religiosos para esse mesmo contato humano e universal, com a integridade interior, verdade e a própria natureza em si. (assinado no original: Philip Wylie).

A resposta de Bill segue adiante. Vamos transcrevê-la, e inserir nossas observações – em itálico e entre colchetes – sempre que considerarmos importantes fazê-lo:
O artigo de Philip Wylie publicado neste número da Grapevine granjeia a simpatia de cada um de nós AAs. Por quê? Porque ele é tipicamente alcoólico. [Bill está ironizando o autor, usando o termo “tipicamente alcoólico”, num sentido pejorativo, para dizer que se trata de coisa de bêbado – e é mais um daqueles preconceitos de Bill contra os ex-dependentes que já denunciamos]. Além disso, ninguém alcança, nem de longe, o espírito generoso e de autossacrifício do autor. Esquecendo sua própria importância mundana, expressa o pouco que lhe importa a opinião do público; arrisca sua reputação para compartilhar conosco o seu caráter. [Aqui Bill não só está ironizando Wylie, dizendo que ele foi generoso e se sacrificou, expondo-se como um mundano[1], como também o está difamando, ao dizer que, confessando sua dependência de álcool, ele estaria mostrando seu caráter, num sentido negativo, pois que está associando a dependência como se fosse um defeito moral do artista. Como viajante solitário que logrou sair tateando pela obscuridade, nos conta como descobriu seu refúgio. Não poderíamos esperar alguém de ânimo mais robusto. O Sr. Wylie pode se tornar um membro de A.A. no dia em que quiser. [O feito de parar de beber, sem precisar de A.A, irrita Bill, que taxa o fato como sendo “tateando no escuro”, já que A.A. seria a única luz. Bill também diz que o espírito forte e a voluntariedade do protagonista o colocam como digno de ser membro da Irmandade Anônima].
É tradição entre nós que o indivíduo tenha direito incondicional de ter a sua própria opinião sobre qualquer assunto que se possa imaginar. Não está obrigado a estar de acordo com ninguém; pode estar em desacordo com todos, se assim o desejar. E de fato, ao encontrar-se numa “bebedeira seca”, muitos AAs ficam assim. [Se a constituição americana dá direito de livre expressão ao indivíduo, por que Bill não o deixou estar para lá com as ideias dele? Não teria Wylie a volição ou o direito de discorrer sobre o álcool e sua liberdade de expressão? Ao mesmo tempo em que diz que o outro tem o direito de se manifestar, Bill mostra que isso o incomoda, e muito, e que por Wylie agir independentemente e dar sua opinião naturalmente, isso justificaria Bill dizer que ele estaria contra as ideias de todos? O “todos” aí significa a pretensão da ideia totalitária de que o tema da dependência de álcool circundaria apenas o Bill e o A.A. Desta maneira, quem emitisse opinião que não fosse aceita por Bill e pela irmandade estaria em desacordo com todos. Segundo essa lógica, Bill e A.A. seriam donos da verdade, mas ele só estaria de acordo com todos se a conquista da sobriedade fosse através de A.A. E por isso compara-o com os AAs que agem como se estivessem bêbados (talvez a expressão fosse muito mais apropriada para ele mesmo, o Bill, ao reagir incontrolavelmente diante da vitória e da ideias do outro)]. Portanto nenhum AA tem por que se sentir desconcertado se não pode estar completamente de acordo com o verdadeiramente estimulante discurso do Sr. Wylie. [Ao mesmo tempo que prepara os membros de AA (numa espécie de lavagem cerebral) para discursos que não estejam afinados com os dogmas da irmandade, dizendo para não se sentirem desconcertados com isso, Bill continua martelando ironicamente o seu desafeto quanto ao seu discurso. Depois, para desfazer o incomodante discurso, ele dissimula, embolando as palavras de forma ambígua]: É mais valioso refletirmos sobre a diversidade de caminhos que há para a recuperação; que qualquer história ou teoria de recuperação elaborada por alguém que já tenha andado o caminho provavelmente terá muito de verdade. [E continua a ironia...] O artigo do Sr. Wylie é como uma fartura de fruta seca. Talvez devêssemos seguir o conselho da dona de casa que diz: “Comamos o que pudermos comer, guardemos o que não pudermos”.
[Ao continuar, Bill chega a um ponto crucial de seu artigo]: O que mais me chamou a atenção foi a referência quanto à experiência espiritual “ao estilo de Jung”, aparentemente, produzida “por uma técnica científica psicológica”. Que benção seria isso para nós, que a cada dia tivéssemos que lutar com o principiante agnóstico! Se pudéssemos apenas dar-lhe uma boa dose desse “símbolo transcendental” e, assim, pôr fim ao assunto. Não teríamos que nos ocupar desse assunto tão cansativo de esperar que nosso candidato chegue aos tropeções a ter a suficiente amplitude de mente para aceitar a possibilidade de um Poder Superior a ele mesmo. [Aí Bill demonstra categoricamente que não conhecia a técnica nem os conceitos teóricos de Jung naquela época – nove anos após a fundação de A.A. aqui cabalmente ele prova que tudo foi forçado, inventado, forjado; enfim que foi uma farsa o que em 1961 ele disse ter se tornado “uma das bases de A.A”, e que ele sarcasticamente chama de “a experiência espiritual ao estilo Jung”. Essa frase dita em tom de deboche mostra que, em 1944, Bill não conhecia e desdenhava a teoria de Jung, mas quando a teoria de Jung ganhou fama, Bill a atraiu para o A.A. como quem puxa a brasa para sua sardinha, e acima de tudo, retrocedeu no tempo dizendo que ela, a partir de Rowland, em 1930, passou a ser uma das bases da irmandade. Bill debocha da experiência espiritual à moda de Jung, afirmando que, se ela tivesse validade, seria muito fácil, pois, em vez de lutar com o principiante ateu, bastaria empurrar-lhe goela abaixo alguma coisa pronta, que seria a dose transcendental. Feito isso, o A.A. não precisaria se desdobrar ao renhir com o dependente agnóstico para abrir-lhe a cabeça e enfiar lá dentro o Poder Superior – trocando em miúdos, fazer a lavagem cerebral no candidato]. [Aqui fazemos uma pergunta que talvez o leitor já tenha feito: E onde está o programa que é para agnósticos também, já que eles (A.A.) têm que lutar com o agnóstico para enfiar em sua cabeça o deus de Bill?].
Não obstante, como o Sr. Wylie comenta generosamente, não é muito importante como se produz a experiência espiritual transformadora, desde que o indivíduo experimente uma que lhe dê resultados. [Nesse ponto Bill contradiz não só a ideia apropriada posteriormente a Jung, como também se contradiz com o outro pé do tripé (também forjado) de sustentação de A.A., que é a validade do pragmatismo de William James[1]. Pois James teorizava exatamente isto: a religião intuitiva individual, livremente buscada por cada um. Para James, a religião individual seria mais importante que a própria religião institucionalizada. Se funcionasse para o indivíduo, não importava como ela fosse concebida. Ao dizer com desdém do indivíduo que experimenta uma que lhe dê resultado, critica a religião pragmática de James, e ainda que ela dê resultado para o indivíduo, isso não tem nenhum valor para Bill, pois ela não foi conseguida de acordo com sua cartilha. Sobre essa cartilha, Bill deixa transparecer que só ele conhecia seus mistérios, como se fosse uma procuração que Deus lhe passara. Desta maneira, de um só golpe ele faz um juízo depreciativo e mordaz daquilo que ele mesmo atestou serem os dois pilares de A.A., exatamente aqueles que alegou ter buscado em Jung e James]. É necessário que o alcoólico, de alguma forma, ganhe suficiente objetividade a respeito de si mesmo para apaziguar seus temores e derrubar seu falso orgulho. Se ele pode fazer tudo isto mediante seu intelecto e, a partir daí, apoiar a estrutura de sua vida em um “símbolo transcendental”, melhor para ele! Mas para a maioria dos alcoólicos, esse plano de vida lhes pareceria pouco adequado.[1] Considerariam a simples humildade e fé no poder de Deus um remédio muito mais forte. O A.A. recorre, sem vacilar, à emoção e à fé, mesmo que o intelectual científico evite esses recursos, tanto quanto possa. No entanto, as técnicas mais intelectuais, de vez em quando, dão resultados, visto que estão ao alcance daqueles que não podem tomar uma dose mais forte. [Agora Bill sugere que a atitude do ator é um falso orgulho que precisa ser eliminado, e que não vê como válido o indivíduo apoiar-se na sua própria razão e nos conhecimentos científicos para sustentar-se. Bill esquece que os seus próprios métodos vinham exatamente de técnicas pseudocientífica. Segundo Bill, mesmo que a técnica experimentada por Wylie funcionasse, seria de maneira superficial, já que isto é para aqueles que não comportam algo bem mais eficaz e maior, disponível apenas para os eleitos de A.A. – antes, desdenhou do símbolo transcendental de Jung, esquecendo-se que ele mesmo criara o símbolo transcendental chamado Poder Superior]. Ademais, quando nos sentimos demasiado orgulhosos de nossos próprios ganhos, isso nos lembra que o A.A. não tem o monopólio de resgatar os alcoólicos. [Bill nesta penúltima frase, insinua que embora A.A. seja a excelência no assunto, o que muito orgulha toda a comunidade interna, a irmandade não tem como tornar-se única, e por isso deve ter complacência com outros meros e pretensiosos métodos, embora demonstre indisfarçavelmente que isso é para ela muito incomodante e também bastante irritante].
De fato, é evidente que o mundo científico vai tendo cada vez mais apreço por nossos métodos, mais do que nós temos pelos deles. Neste sentido, estão começando a nos dar lições de humildade. [Ao final do parágrafo, Bill faz por onde diminuir a ciência que favoreceu a recuperação de Wylie (e a sua própria), pois que, ela mesma, a ciência, na sua delirante presunção, está se rendendo humildemente ao A.A. Deixa nítido que A.A. devota à ciência cada vez menos consideração – a pretensão de A.A. de estar acima da ciência sobrevive até os dias atuais, porque não muda seus pressupostos, ainda que seus métodos fiquem cada vez mais obsoletos e a ciência continue a evoluir a passos largos].
[Por fim, para atirar uma farpa em Wylie, Bill termina citando o Dr. Harry Tiebout, que enalteceu o trabalho religioso do A.A. em detrimento das técnicas psiquiátricas, e sua última frase dá o tom dessa declaração, ainda que ela queira insinuar um efeito inverso, paradoxalmente, como o foi para ele, que se tornou onipotente com sua pseudoexperiência espiritual]: “Uma experiência espiritual ou religiosa é o ato de abandonar nossa própria onipotência” (sic).
Outro aspecto muito interessante trazido à tona nesse episódio é como Bill se deixava enrolar por seus interesses (reais) não revelados, tnteresses esses que mudavam de acordo com as circunstâncias. Nesse caso, acabou mostrando como a incoerência gerou outras incoerências. Quando Bill quis persuadir os AAs a usarem LSD, em 1956, argumentou que “tudo o que possa ajudar alcoólicos é bom e não deve ser descartado. Era preciso explorar técnicas que ajudassem homens e mulheres, que não se adaptassem a A.A. ou a um outro caminho, a se recuperar”. Mas nessa ocasião, tanto os achados de Wylie quanto os de Jung, além de não serem aceitos, seriam desprezíveis. Já naquela outra ocasião, a LSD não só seria plenamente aceitável, como até teria recompensas divinas pelo seu uso, como ele afirmou categoricamente. Enfim, se fosse para o interesse de Bill, o demoníaco se tornava divino, e vice versa. O que fosse bom para os outros, mas não o fosse para Bill, era abjeto. Incongruências e incoerências.
Voltando ao texto de Bill, num dos trechos que consideramos ser ponto importante do seu artigo, ele afirma que o que mais lhe chamou a atenção foi a referência quanto à experiência espiritual “ao estilo Jung” e à “técnica científica”. Bill colocou os termos jocosamente entre aspas e passou a criticar bem ao seu estilo, com ingredientes irônicos e depreciativos. A técnica ao estilo Jung, de caráter científico, não merecia crédito, mesmo porque para ele, o mundo científico cada vez se dobra em reconhecimento ao A.A., e este não reconhece o valor da ciência. Esse enaltecimento dos dogmas A.A. e desprezo pela ciência foi outro ponto marcante que Bill introjetou na irmandade que perdura até os dias atuais[1]: seus ensinamentos divinizantes em detrimento do conhecimento científico.
O mais impressionante de tudo isso é que aqui ele está criticando mordazmente um dos pés do tripé do A.A., uma de suas sustentações, um dos preceitos fundamentais, nas suas próprias palavras. Pois foi ele quem disse para o mundo, através da carta de próprio punho a Jung,[1] datada de 23/01/1961, que mencionamos aqui anteriormente: esta carta, segundo a biografia, era a formalização da gratidão de Bill àqueles que ele considerava responsáveis pela criação da Irmandade A.A. E no primeiro lugar da lista estava Carl Gustav Jung, conforme já vimos. Num trecho da carta está escrito assim: “Esta sua posição sincera e humilde foi, sem dúvida, a primeira pedra em que fundamentamos a nossa Sociedade”.
As contradições aterradoras declaradas documentalmente, que aqui expomos, mostram o que seja realmente a personalidade de Bill: quando escreveu este artigo molestando o Sr. Wylie (setembro de 1944), publicado na Revista Grapevine, Bill mostra indiscutivelmente que ignora por completo Jung e suas teorias (possivelmente procurou se inteirar sobre Jung e suas teorias quando foi escrever a carta). Jung representava um desafio ao A.A. Bill ignora também que Rowland estivera com Jung, e que este mesmo Rowland no futuro seria considerado o “mensageiro divino” que trouxe da Suíça de Jung a “pedra angular” que tornou possível a edificação de A.A. (nove anos antes de escrever este artigo). Na carta enviada a Carl Jung em 1961, Bill logo no primeiro parágrafo, informa ao seu missivista: “com certeza ignora que uma conversa que manteve com um de seus pacientes, Mr. Rowland, nos idos de 1930[1], tornou-se uma das regras fundamentais da nossa Sociedade”, nos seus dizeres, a primeira pedra. Então como é que em 1932, o que era uma regra fundamental e a primeira pedra da construção de A.A. (que foi fundado em 1935) ele desconhecia e repudiava em 1944? Ele relatou a Jung o que não era verdade. Evitamos até aqui uma palavra que poderia dar um sentido pessoal, ou mesmo não bem estabelecida dentro do âmbito cientifico, mas não é impropério dizer que há nuances de cinismo nessas edificações imaginárias. Puro imaginário intelectual.
Tal constatação corrobora nossas informações anteriores de que ele, Bill, não conhecia Rowland, e que este não fora membro de A.A., e portanto, ele não teria passado nada para Bill, passou sim para Ebby[1], e este para Bill. Mas Bill queria “forçar a barra” e dar a entender a Jung (e para todos) que foi Rowland que lhe trouxera as boas novas diretamente de Jung, possibilitando assim agregar ao A.A. parte do patrimônio intelectual do psiquiatra. Desta forma, vinculou-se a irmandade de A.A. às teorias de Jung, com o fito de dar-lhe maior credibilidade e publicidade[1], já que naquela época Jung estava em evidência mundial. De duas uma: 1) Jung teria caído na capciosa armadilha de Bill fragorosamente, tanto é que na resposta a Bill, ele mostra isso logo de cara ao dizer: “O diálogo que mantivemos, ele e eu, e que ele muito fielmente lhe transmitiu [...]”. Aqui, no jogo de palavras sem nenhuma veracidade, já que o que Jung disse a Rowland, segundo as palavras (presumidamente mais confiáveis) deste, foram bem diferentes, uma vez que Jung não aceitou retomar o tratamento de Rowland, que foi seu paciente. Além do mais ainda mandou Rowland procurar por um milagre; ou 2) Jung teria aceitado o que Bill lhe disse, como sendo palavras de Rowland, que teriam se originado do diálogo entre o médico e seu paciente. Em outras palavras, Bill inventou uma mensagem de Jung que Rowland teria lhe transmitido, e por sua vez, Jung disse que a mensagem (que ele não elaborou) foi transmitida com fidelidade ao Bill – um mentiu envolvendo o outro, e o envolvido disse que a mentira era uma verdade. Como poderemos colocar em dúvida a conclusão de Noll sobre Jung, de que este falseava? E sobre Bill, é possível não vê-lo materializado no mesmo adjetivo? Para bem definir essa dupla, caberia aqui a expressão “a tampa e o balaio”, que em nossa região, significa que ambos são da mesma feitura e complementaridade.
Nesse ponto de nossa narrativa, cabe salientar dois pontos importantes. 1) Quando Jung, desacreditando de Rowland pela sua derradeira recaída, lhe comunicou que não aceitava a retomada do tratamento que ele pedia, aconselhou-o a procurar uma religião. Bill reportou esse conselho com insinuante semântica: “tornar-se o sujeito de uma genuína experiência espiritual ou religiosa [...] Mas preveniu-o de que conquanto tais experiências tivessem acontecido a alguns alcoólicos, elas eram comparativamente raras”[1]. O teor da frase que Bill usou para reportar o conselho dado por Jung não pode ser confirmado, porque na resposta de Jung, este ressalvou assim: “A razão pela qual não pude dizer tudo foi que naquela época eu tinha que ser cuidadoso com tudo o que dizia. Eu havia descoberto que estava de todas as maneiras mal interpretado”.

Nem sabemos se Jung realmente falou de experiência espiritual nos termos que Bill reporta, pois as práticas da psicologia analítica que Jung empregava em seus pacientes, e que já abordamos exaustivamente, eram bem diferentes disto. Apenas o que fica claro é que Jung disse para Rowland - de quem queria se ver livre – é que ele era um caso perdido e que deveria procurar por um milagre. Na verdade, o que Rowland fez depois disso (e não se sabe a quantas bebedeiras depois) foi o que muitos dependentes fazem ao chegar ao fundo do poço: procurar uma religião para infrutiferamente resolverem seus problemas da dependência. Tal procedimento quase sempre redunda em frustração, uma vez que o sucesso nessas incursões é uma exceção à regra, como o foi no caso dele, Rowland. Foi bem provavelmente assim que Rowland chegou até aos Grupos Oxford, onde participava de uma equipe de abordagem a dependentes de álcool. Como era amigo de Ebby, abordou-o e o levou para um dos Grupos Oxford. Bill, por intermédio de Ebby, foi para um desses grupos também, e provavelmente não era o grupo que Rowland frequentava, pois Bill nunca mencionou seu nome. Não mencionou nem lhe dedicou uma única linha em seus escritos, o que certamente deveria ter feito, se fosse verdadeira a participação de Rowland como mensageiro de Jung, como Bill matreiramente quer deixar a entender. Só veio a mencionar o nome deste personagem quando urdiu toda essa história e escreveu para Jung. 2) Jung caiu ou se deixou cair na urdidura de Bill, pois ao aceitar o jogo, possivelmente vendo aí uma oportunidade, tirou proveito do ensejo. Aproveitou para não só salientar sua teoria “abraçada” por A.A., como também para inventar a origem espiritual da doença e imiscuir-se em campo alheio aos seus conhecimentos: a dependência de álcool. Desta forma, criaram mais um mito (muito ao feitio dos dois) e se potencializaram em seus objetivos, objetivos esses profundamente danosos para a humanidade, que só agora recentemente, Richard Noll denuncia (pelo menos quanto a Jung), de forma brilhante e inquestionável. No caso de Bill até constam muitas denúncias esparsas, como no caso dos jornalistas Álvaro Opperman, que veremos nas próximas páginas, e de Luiz Edmundo que veremos bem mais na frente, e ainda, as muitas denúncias do site orange. Da mesma forma que Noll, estamos também denunciando um erro histórico, que neste caso, foi perpetrado por Bill, useiro e vezeiro em induzir a humanidade a engano. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Ainda bem que ele morreu