Em seu desespero e desamparo, Bill gritou: “Farei qualquer coisa,
qualquer coisa que seja!” Ele havia chegado ao ponto de total esvaziamento – um
estado de rendição completa e absoluta[1].
Sem nenhuma fé ou esperança, ele gritou: “Se é que Deus existe, que Se revele!”
O que aconteceu em seguida foi eletrizante. “O quarto foi subitamente
inundado por uma luz indescritivelmente branca” (L.A., p. 130: as outras
citações nesta página também são do mesmo livro e página aqui indicado)
Bill relata que foi arrebatado por um êxtase impossível de ser
descrito. Sentiu uma alegria que jamais sentira, seguida de uma inconsciência
durante algum tempo (exatamente igual a uma exacerbação de euforia, como nas
alucinações). Bill continua: “então vi, com os olhos da mente (o grifo é
nosso), que havia uma montanha. Eu me achava no cume da mesma, onde soprava um
vento muito forte. Um vento feito, não de ar, mas sim de espírito. Forte e
poderoso, o vento soprava diretamente através de mim”.
Conforme iremos discorrer mais
adiante, inclusive fazendo as citações científicas de trabalhos realizados por
especialistas, entendemos muito bem quando Bill fala em ver “com os olhos da
mente”, quando ele fala que o vento é feito de espírito e não de ar, e ainda
que o vento soprava diretamente através dele, pois na alucinação, a realidade
alucinada é muito mais “viva”, muito mais intensa, muito mais empolgante e tem
conotações de realidade muito maior que a própria realidade. Estas são
impressões de quem alucina. É o inconsciente que traz à tona o passado psíquico
do indivíduo para se manifestar. Muitos relatos de adeptos de religiões e
seitas que utilizam drogas alucinógenas em seus rituais são parecidos com a narrativa
de Bill. A impressão que causa a alucinação é tão fantástica que muitos se
deixam levar pela emoção e dizem que se trata de expansão da consciência.
Como exemplo, tomamos os casos de Timothy Leary, Stanislav Grof e o da seita do
Santo Daime. Leary, professor de Harvard, e Grof, psiquiatra, deixaram-se
abalar emocionalmente a ponto de fundar religiões e escrever sobre a tal
expansão da consciência provocada pelos alucinógenos. Falaremos sobre os três
mais adiante.
Veja que a montanha da infância de Bill foi uma representação psíquica
muito importante para ele, pois ele sonhava ser grande igual a ela, e ela o
acompanhou pela vida afora. Bill continua, dizendo que então lhe ocorreu o
fulgurante pensamento “você é um homem livre”. Depois, não se sabe por quanto
tempo durou esse transe, porém a sensação passou, e ele pôde ver novamente as
coisas a sua volta e, em seguida, após se acalmar, sentiu uma paz profunda,
ficando “agudamente” consciente de algo que ele chamou de “um verdadeiro mar do
espírito vivo” (L.A., p. 130). Vários dependentes contam que, ao sentir
essa sensação de euforia, ou alucinação, ficam extremamente cônscios, possuídos
de muita lucidez e percepção, achando inclusive que são dotados de poderes para
se elevarem acima do chão ou passarem qual fantasma por paredes. Muitos pensam
que podem ler a mente das pessoas, enxergar doenças e curá-las, sentem-se
encorajados, pensam e agem com tamanha segurança que são capazes de feitos que
em estado normal de consciência dificilmente o conseguiriam. Contudo, a maior
parte do que lhes passa pela cabeça é fantasia pura. Muito parecido com as
alucinações provocadas pela LSD[1]. A propósito, a LSD se presta
também para servir de exemplo a esse encorajamento que se apossa do indivíduo
nessas situações. A LSD é usada na presença do que se denomina “anjo da
guarda”, que é a pessoa que vai controlar os impulsos do usuário. Sob os
efeitos dela, o usuário pode pensar que é capaz de voar e se jogar do alto de
um edifício, ou deter a marcha de uma locomotiva, obstruindo sua passagem com
as mãos.
Bill continuou curtindo aquele seu estado emocional e refletindo.
Pensou que aquilo deveria ser o Deus dos pregadores, uma realidade que ele não
conhecia, nos seus dizeres; sentia-se possuído pelo absoluto, entendia a
perfeição do universo e achava que não precisava se preocupar com mais nada,
pois sabia que era amado e podia amar em retribuição: “havia vislumbrado o
grande além” (L.A., p. 131).
A experiência começou a suscitar dúvidas em Bill que, desconfiado de
que tudo aquilo poderia ter sido uma alucinação, solicitou a presença do Dr.
Silkworth para ajudar a esclarecer-lhe sobre o ocorrido. Depois de lhe ouvir, e
indagado se estava lúcido, o Dr. Silkworth lhe respondeu. Acontece que a
resposta que o médico lhe deu está conflitante nos dois livros aqui já
mencionados. No livro L.A. está escrito: “‘Sim, meu rapaz, você está
lúcido, perfeitamente lúcido, creio eu. Você passou por alguma grande
ocorrência psíquica, algo que eu não compreendo. Já li sobre esse tipo de
coisa, mas nunca presenciei nenhuma eu mesmo. Você teve ter passado por algum
tipo de experiência de conversão’. E prosseguiu: ‘Você já é uma pessoa
diferente. Assim meu rapaz, qualquer coisa que possua agora, é melhor se
agarrar a ela. Isso é muito melhor do que aquilo que tinha apenas duas horas
atrás’”. No livro Alcoólicos Anônimos Atinge a Maioridade, que é de
autoria de Bill, está assim registrado: “O Dr. Silkworth me fez muitas
perguntas e, depois de alguns minutos disse: ‘Não Bill, você não está louco.
Aconteceu aqui algum fato, em nível psicológico ou espiritual. Tenho lido a
respeito dessas coisas nos livros. Às vezes as experiências espirituais
libertam pessoas do alcoolismo”. Na biografia de Bill, os fatos dessa passagem
sobre a experiência espiritual estão colocadas de maneira bem mais enfática, e
ainda sobre essa passagem, há um trecho que fala da aquiescência do Dr.
Silkworth – como se ele endossasse o fenômeno como sendo uma experiência
espiritual. Logo após o Dr. Silkworth ter se pronunciado sobre a misteriosa
experiência espiritual de Bill, os biógrafos se expressaram assim: “Vinda de
Silkworth, agora uma figura central na vida de Bill, essa avaliação significava
tudo, atribuindo uma chancela à experiência de Bill e tornando-a aceitável para
a parte de sua mente que questionara longa e obstinadamente a ideia de Deus” (L.A.,
p. 133). Está claro que os biógrafos ficaram apenas com uma parte da
manifestação do médico e simplesmente desconheceram a outra, a que falava da
“grande ocorrência psíquica”, num livro, e “fato em nível psicológico”, no
outro livro. Em primeiro lugar, parece-nos claro que a sugestão de um
acontecimento fantástico ficou a cargo de Bill, e depois é bom antecipar ao
leitor sobre o fato de este médico, posteriormente, ter desencorajado Bill a
continuar pregando sobre essa sua suposta experiência espiritual. Quando
advertiu Bill, ele deixou claro o tom de suspeição sobre ela. Naquela
oportunidade, o Dr. Silkworth lhe disse que só estava conseguindo fracassos
porque estava pregando aos alcoólicos, e acrescentou com a seguinte frase: “Daí
você termina, falando acerca de sua misteriosa experiência espiritual” (Alcoólicos
Anônimos atinge a maioridade, p. 59).
Outra observação que sentimos na obrigação de fazer neste exato momento
é sobre dois pensamentos que vieram à consciência de Bill, instantes antes de
bradar para que Deus se revelasse. Pelo menos é isso que os biógrafos
sugestivamente interpretam, porque no livro que Bill escreveu, não existe nada
a respeito desse primeiro pensamento, e o segundo segue a mera dedução dos
biógrafos. O primeiro, registrado dois parágrafos antes: “Pensou na Catedral de
Winchester e no momento que quase acredita em Deus” (L.A., p. 130). O
segundo pensamento está no mesmo parágrafo, logo antes do brado messiânico: “Ele
havia chegado ao ponto de total esvaziamento – um estado de rendição completa e
absoluta” (L.A., p. 130).
No primeiro pensamento, ainda que façam alusão à Catedral de
Winchester, os biógrafos não se esqueceram de dizer que foi um acontecimento em
que Bill “quase” acreditara em Deus, como se tudo isso fosse uma premonição. No segundo, vemos que tiveram o capricho de colocar
os pressupostos do Grupo Oxford e os de William James, de forma inadvertida, para que isso
pudesse dar legitimidade à ocorrência da tal experiência, ou seja, de forma a
dar a entender que ela ocorreu dentro dos parâmetros previstos pelo Grupo
Oxford e por William James. Por todas as omissões e opiniões nada isentas dos
biógrafos, e também por todas as manipulações e fatos “arranjados” por Bill, é
sensato que se coloquem sob suspeição esses detalhes. Até mesmo a qualidade
esplendorosa da alucinação deve ser vista com prudente reserva. Afinal, na hora
de fazer o relato, as coisas podem ser arranjadas, para dar a conotação
desejada, como Bill fez no caso de Jung, quando arranjou friamente uma das
bases do A.A., fato que mereceu toda nossa acuidade, como mostraremos
ulteriormente.
Outra nota digna de registro sobre esse total esvaziamento é a rendição
completa e absoluta de Bill, condição preconizada pelo Grupo Oxford e por
James, para que pudesse ocorrer a conversão (despertar espiritual). Acontece
também que essa é a mesma condição a que chega o dependente no seu estágio
final do alcoolismo: ele se sente exatamente assim, e nem por isso pensamos que
ele está pronto para uma experiência de conversão. Está, sim, prestes a perder
a consciência e enlouquecer, e infelizmente é isso o que acontece amiúde. Foi
isso que Bill disse pelo menos uma vez, senão mais. O Dr. Bob, em sua última
palestra em Detroit (já citada), frisou que foi seu pavor pela loucura e não a
experiência espiritual o que o levou a mudar seu rumo. Aliás, essas posições
bem opostas entre um e outro eram vistas como características peculiares que os
distinguiam. O bom senso e o equilíbrio, de um lado, e o destemperamento
faustiano, de outro.
De minha parte, também vivenciei experiência muitíssimo parecida com
essa chamada experiência espiritual de Bill e, por boa parte da vida, pensei
que também havia vivenciado um estímulo místico, inclusive chegando a narrá-lo
nos livros Renascer e Drogas: Evite ou Saia, Não Morra (vide
bibliografia), em que o leitor poderá constatar a incrível semelhança. Depois
de vários anos de estudos sobre a dependência de álcool, pude verificar que, na
verdade, no meu caso, não se tratava de nenhum fenômeno religioso e, sim, de
uma sensação provocada por uma crise de euforia e alucinação, associada à
Síndrome de Wernicke-Korsakoff. Sobre esta, veremos daqui algumas páginas.
Saliento aqui que a euforia excessiva, como no caso do TBH, é
extremamente parecida com as alucinações produzidas pelo delirium tremens,
por outros tipos de alucinações, como as provocadas pela cocaína e pelo LSD, e
pelos efeitos euforizantes intensos provocados por outras drogas. Aliás, Bill
posteriormente, ao usar LSD, ficou muito entusiasmado e afirmou que a droga
favorece uma experiência direta com Deus, idêntica à que sentiu no hospital.
Sobre isso, veremos mais detalhadamente.
Outra nota a ser registrada refere-se à abordagem que estamos dando ao
caso: o que aconteceu a Bill não é nada transcendental, e sim, perfeitamente
explicado cientificamente, mas é possível que ele estivesse apenas confundindo
ou se aproveitando do acontecimento para urdir outra coisa. No entanto, o
próprio leitor, ao final deste trabalho, depois de se inteirar melhor sobre a
personalidade de Bill e suas intenções, poderá avaliar se essa história não
pode ficar sob suspeição.
De oportuno, citamos aqui dois pensamentos. O primeiro é do consagrado
historiador e filósofo escocês David Hume (1711-1776): “Nenhum depoimento é
suficiente para estabelecer um milagre, a menos que o depoimento seja de tal
natureza que sua falsidade seria mais milagrosa que o fato que ele pretende
estabelecer”. O segundo pensamento é do filósofo britânico Thomas Paine
(1737-1809): “Jamais vimos, em nosso tempo, a natureza sair de seu curso. Mas
temos bons motivos para crer que milhões de mentiras tenham sido contadas no
mesmo período. É portanto no mínimo de milhões para um a chance de quem relata
um milagre estar mentindo.”
O despertar espiritual de Bill à luz da
ciência
Neste capítulo, vamos analisar o que pode ter acontecido na realidade
com Bill, no quarto do Towns Hospital, uma vez que temos forte convicção e
encontramos evidências gritantes de que a suposta experiência espiritual não
tenha passado de mera ocorrência de fenômenos alucinatórios associados ou não a
TBH. Tais fenômenos são muito comuns em dependentes de álcool, nas mesmas
circunstâncias patológicas de Bill. Ficamos com a hipótese de que a ocorrência
foi “em nível psicológico”, ou “alguma grande ocorrência psíquica”, mencionada
pelo arguto Dr. Silkworth. Intuímos até que os fatos não passaram despercebidos
ao Dr. Silkworth, mesmo porque ele conhecia o delirium tremens, sabia
dos efeitos alucinógenos do meimendro e da beladona ele que havia administrado
ao paciente, e também porque demonstrou ter competência no trato com os
dependentes de álcool e ser uma pessoa de grande visão. O atento médico
possivelmente não teria ficado na dúvida comunicada ao Bill e teria sido mais
conclusivo em seu diagnóstico, se isto fosse o mais indicado naquelas
circunstâncias. Ou bem mais provavelmente, tendo conhecimento do que se
passava, não quis se pronunciar, esperando que a transformação ali operada
pudesse ajudar o problemático paciente, já que a ocorrência provocou uma
intensa reação nele.[1] Lembre que o Dr. Silkworth disse
ao paciente: “Você já é uma pessoa diferente. Assim meu rapaz, qualquer coisa
que possua agora, é melhor se agarrar a ela”. O delirium tremens já era
conhecido naquela época, e o médico com certeza tinha ciência disso. No nosso
entendimento, o quadro patológico de Bill comportava, sob vários aspectos, a
manifestação de fenômenos alucinatórios e também um pico na crise de euforia,
provocado pelo TBH (Transtorno Bipolar do Humor), já que as evidências de Bill
ser um bipolar são nitidamente percebidas desde a sua infância. Sobre isso,
trataremos agora.
Transtornos mentais e comportamentais
devido ao uso de álcool: CID (Código Internacional da Doença)
De acordo com a catalogação efetuada pela OMS, a dependência de Álcool
recebeu os CID F10.0 a F10.9, em que estão discriminados os transtornos
provocados pelo álcool, para se diagnosticar a doença, conforme abaixo:
CID-F10.0 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool – intoxicação
aguda.
CID-F10.1 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool – uso nocivo para
a saúde.
CID-F10.2 – Transtornos
mentais e comportamentais devido ao uso de álcool – síndrome de dependência.
CID-F10.3 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool – síndrome
(estado) de abstinência.
CID-F10.4 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool – síndrome de
abstinência com delirium.
CID-F10.5 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool –
transtorno
psicótico.
CID-F10.6 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool –
transtorno amnésica.
CID-F10.7 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool –
transtorno psicótico
residual ou de instalação.
CID-F10.8 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool – outros transtornos
mentais ou comportamentais.
CID-F10.9 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool –
transtorno mental ou
comportamental não especificado.
CID-F10.0 e CID-F10.5
Detalharemos apenas
os CIDs F10.0 e F10.5, que no momento nos interessam aqui neste trabalho.
CID-F10.0
O CID-F10.0 –
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool
– intoxicação aguda:
os critérios de diagnósticos de intoxicação estão baseados nas evidências
recentes de ingestão pelo álcool, com alterações de comportamento mal
adaptativas, sinais de comprometimento neurológico, lentificação psicomotora,
prejuízo na coordenação e julgamento, labilidade do humor e déficit cognitivo.
No caso desse CID, cremos que não há nenhuma dúvida quanto à
identificação do estado de Bill, porque, como tivemos a oportunidade de ver,
ele apresentava as evidências de recentes ingestões de álcool, uma vez que em
seus depoimentos escritos e pela biografia, Bill só não vinha bebendo muito nos
últimos dias, como também chegou ao hospital bêbado e portando uma garrafa nas
mãos. Também ficaram verificados inúmeros itens que evidenciavam alterações de
comportamento mal adaptativas, principalmente motivados pelos desentendimentos
com as pessoas, brigas e condutas desajustadas. Em vários momentos ficaram
registrados os sinais evidentes de comprometimento neurológico, lentificação
psicomotora, prejuízo na coordenação e julgamento, labilidade do humor e
déficit cognitivo, principalmente nos períodos pré-internação, quando estava
bastante confuso, cometendo atos desatinados. Ele mesmo se revelou ao dizer que
estava prestes a ficar louco e com ideações suicidas. No caso de Bill, notam-se
com facilidade as exaltações (e alterações) do humor, a aceleração do
pensamento, as ideias de grandiosidade e as agitações psicomotoras. A
literatura científica fala que, embora haja aceleração do pensamento (sensação
de que os pensamentos fluem mais rapidamente), fica a incapacidade de dirigir a
atividade para metas definidas, ou seja, embora verifique aumento da atividade,
a pessoa não consegue ordenar as ações para alcançar objetivos precisos (Del
Porto, 2006: www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm).
Também aconteceram os alertas médicos, principalmente na penúltima vez
que Bill se internou, quando o Dr. Silkworth sugeriu a Lois, sua esposa, que o
trancasse para sua própria segurança. O médico também a teria advertido advertência
que, se continuasse daquele jeito, Bill não duraria mais um ano de vida.
CID-F10.5
E a seguir vem o CID-F10.5 – Transtorno psicótico: é um conjunto de
manifestações afetivas, psicóticas, com quadro delírio-alucinatório, falsos
reconhecimentos e transtornos psicomotores, que ocorrem durante ou
imediatamente após o uso prolongado de álcool. O quadro alucinatório, antigamente
conhecido como alucinose alcoólica, pode seguir a um episódio de delirium.
Quanto a este CID (transtorno psicótico), também ficam evidentes suas
manifestações no quadro de Bill, mas vamos nos ater ao delírio-alucinatório,
ou, como era chamado, alucinose alcoólica, uma vez que ele está diretamente
ligado, ou confundido, com a tal experiência espiritual e exige maiores
explicações para bom entendimento do leitor. Ainda para maior esclarecimento,
reafirmamos que a alucinação alcoólica ocorre em seguida à manifestação do delirium
tremens.
Pressupostos básicos para a manifestação de
alucinações
A
princípio, não fica difícil entender que a situação de Bill era francamente
favorável à manifestação desse transtorno, mas conhecer os mecanismos pelos quais
eles concorrem para compor o quadro facilita sobremaneira a compreensão dos
fatos à luz da razão e da realidade, desmistificando a auréola que envolve o
caso do Bill.
Dissemos
que a situação de Bill favorecia o aparecimento desse
transtorno delírio-alucinatório. Tanto é verdade que ele já havia sido
acometido pelo tal transtorno anteriormente, só que com outros contornos. Vamos
lembrar novamente uma passagem, por ocasião da segunda internação de Bill,
quando ele disse (L.A., p. 114): “À noite, eu me enchia de terror porque
a escuridão era infestada por coisas rastejantes. De dia, ocasionalmente,
imagens estranhas dançavam pelas paredes”. Eis aí a primeira manifestação,
clara e inequívoca, do delírio-alucinatório, que neste caso é um delírio
persecutório. O que houve depois, na última internação, foi apenas a
recorrência do fenômeno, só que em vez de zoopsias, houve alucinação onírica,
visual, e nesta ocasião, o objeto alucinado foi a luz, seguido pelas visões de
sua infância.
Outra observação importante que deixamos aqui é que são muito comuns
essas manifestações em dependentes de álcool em estágio adiantado da doença,
sendo frequentes suas constatações na literatura médica e em relatos clínicos,
e Bill não seria uma exceção, nem tampouco vítima de um acontecimento raro.
Quantos e quantos casos contados por dependentes, que alucinaram com bichos
ferozes ou não, escondidos embaixo da cama, subindo pelas paredes, ou ainda,
que alucinaram com sons, imagens e luzes. O sistema nervoso central de todos os
dependentes em fases adiantadas da doença encontra-se lesado e/ou demente – em
suma, bastante afetado -, o que propicia delírios e alucinações. É também muito
comum nessa circunstância o acometimento da síndrome de Wernicke-Korsakoff, em
que o paciente fica confuso e com afetações graves de memória. Veremos mais
sobre esta síndrome no capítulo “A doença”. No livro O Alcoolismo, de
Ronaldo Laranjeira e Ilana Pinsky, é dito que devido a alguma doença ou porque
a pessoa efetivamente decidiu parar de beber, os sintomas da síndrome de
abstinência podem se intensificar. “Cerca de 60% dos pacientes não necessitam
de tratamento específico para esses desagradáveis sintomas, somente repouso,
hidratação e comida leve. Para 40% deles, os sintomas pioram muito, podendo
produzir três tipos distintos de complicação: convulsões, delirium tremens
e alucinose alcoólica” (Laranjeira e Pinsky, 1997, p. 28). É muito importante
dizer que Bill estaria sujeito ainda a ter alucinações provocadas pelos
barbitúricos Meimendro e Belladona, que lhe foram administrados pelo Dr.
Silkworth. Além do delirium tremens e da Síndrome de Wernicke-Korsakoff,
as alterações comportamentais provocadas pelo TBH também devem ser levadas em
consideração. Bill poderia ter sido acometido por um ou mais desses transtornos,
ou até por todos eles concomitantemente.
No que diz respeito às alucinações visuais, de acordo com a moderna
concepção psiquiátrica (porque até recentemente se falava em percepção sem
objeto), explica-se “porque percepção sem objeto, em verdade, não existe. Toda
percepção é sempre percepção de algo e implica forçosamente direção para um
objeto (Amaral, 2007). Se a percepção é um fenômeno sensorial que inclui um
objeto estimulante e um sujeito receptor (!), como falar em percepção sem
objeto? Eis um desafio conceitual que a patologia mental coloca à psicologia do
normal (Dalgalarrondo, 2002). Este vem a ser, em última análise, o seu conteúdo
perceptivo empírico que, apesar de falso ou irreal, representa um dado imediato
de consciência”. Esclarecido esse pormenor técnico, de qualquer forma, as
alucinações visuais, são imaginação de coisas sem que elas existam de fato. “O
indivíduo tem uma convicção inabalável quanto à existência do objeto alucinado,
pois ele é percebido mais nitidamente do que objetos reais, conforme já
havíamos dito anteriormente. E isso, com um detalhe muito importante: o
conteúdo das alucinações é extremamente variável, porém guarda sempre uma
íntima relação com a bagagem cultural do paciente que alucina”
(psiqweb.med.br/alucin.html). É impossível alucinar com algo que não pertença
ao mundo psíquico do paciente.
Então, no caso do Bill, alguns dos elementos psíquicos ele mesmo
revelou-nos em seus escritos, como por exemplo, a montanha que aparece na
alucinação: “nasci à sombra de uma montanha chamada Aeolos. Uma de minhas
primeiras recordações [veja a fixação sobre ela que ele levou pela vida afora]
foi quando eu estava observando aquela enorme e misteriosa montanha e me
perguntando o que ela era e se algum dia eu subiria tão alto”. Logo adiante,
ele afirma: “comecei a desenvolver uma grande vontade de vencer. Decidi ser o
homem Número Um”. Calcule a importância dessas reminiscências para Bill, que se
tornou o A.A. número um e buscou obsessivamente se destacar e galgar a escala
social. Outra coisa importante é o que ele diz sobre a alucinação: “pareceu-me
com os olhos de minha mente”. Há correspondência com as chamadas “alucinações
extra-campinas”, que, conforme relatos científicos, são visões em que o
paciente consegue ver cenas fora do seu campo sensorial, como enxergar do lado
de fora da parede (psiqweb). Possivelmente há ainda um vasto repertório de Bill
que ele não disse, mesmo porque muitos deles seriam praticamente impossíveis de
ser explicados objetivamente, como foi o caso do evento em Newport, quando
estava com Lois, pouco tempo antes de embarcar em missão de guerra (L.A.,
p. 62), e noutra ocasião, na Catedral de Winchester. Em Newport, do alto da
colina com vista para o mar, ele narrou: “Ela e eu olhávamos para o horizonte,
cismando. O sol estava apenas se pondo e falamos do futuro com alegria e
otimismo. Naquele lugar, senti os primeiros lampejos daquilo que eu perceberia
mais tarde como sendo uma experiência espiritual... Nunca me esquecerei”. Veja
como Bill associa sem nenhuma dificuldade a percepção e sensação que ele teve
ali ao lado da esposa com a mesma sensação que sentiu na dita experiência
espiritual. Na catedral de Winchester foi relatado assim: a atmosfera se impôs
tão profundamente sobre ele que provocou uma espécie de êxtase, acionado e
agitado por uma “tremenda sensação de presença”. “Durante um breve momento,
precisava e queria Deus. Havia uma humilde vontade de tê-lo comigo – e Ele
veio”. Aqui, igualmente, ele distingue a sensação que teve na ocasião como a
mesma que ele percebeu no quarto do hospital. Em ambas as situações, ele as
invocou e testemunhou como sendo a presença de Deus.
Oportuno dizer aqui do trabalho do Dr. Oliver Sacks, sobre essa
sensação de presença de Deus narrada por Bill. Este conceituado cientista chama
isso de epifania religiosa provocada por alucinação. Segundo o Dicionário
Houaiss, um dos significados de “epifania” é o aparecimento ou
manifestação reveladora de Deus ou de uma divindade. Sacks é um dos maiores
neurologistas da atualidade e publicou recentemente o livro Mentes
Assombradas, em cuja sinopse (facilmente encontrada na internet) revela-se
que o cientista se interessou pessoal e profissionalmente pelas chamadas drogas
psicodélicas, os alucinógenos, na década de 60, associados aos estudos da
enxaqueca, temática que o levou, até os dias de hoje, a pesquisar sobre este
interessante campo do conhecimento. Nestes estudos ele relata como as
alucinações permitem desvendar a organização e a estrutura de nosso cérebro, e
como elas influenciam a cultura, o folclore e a arte. Sacks revela que o
potencial para a alucinação reside em todos nós e é parte essencial da condição
humana. O estudioso afirma que as alucinações estão frequentemente ligadas a
privações sensoriais, intoxicações, doenças ou lesões. Por mais esta
contribuição científica, de um perspicaz estudioso, entendo que o folclore
criado em torno da epifania religiosa de Bill ficou muito bem conhecida da
ciência.
Como ficou demonstrado, o mundo psíquico de Bill estava ricamente
abastecido de elementos que compuseram as alucinações, estando plenamente
coerente com a afirmação de que “não é possível alucinar com algo que não
pertença ao mundo psíquico do paciente”.
Além dessas passagens que fazem parte da “bagagem cultural e psíquica”
de Bill, encontradas nos relados dele mesmo e em sua biografia, deveria haver
ainda outras tantas passagens, acontecimentos, fatos e reflexões, e
provavelmente até mais, se formos analisar a criação de Bill pelos avós, a
região em que nasceu etc. Além do avô paterno, que encontrara a religião num
despertar religioso e nunca mais bebera, deveria haver no âmago de Bill um
vasto repertório de imagens. Também haveria as experiências de conversão
religiosa de seus demais parentes (e talvez da sua própria, uma vez que há a
omissão da religião em sua biografia) no recôndito de sua mente.
Desta forma, entendemos que Bill foi “programado” para passar por
aquela alucinação, e tanto isso é evidente, que seu último pensamento antes que
ela acontecesse foi expressa na frase: “Se é que Deus existe, que Se revele!”
Estava tudo meticulosamente preparado, tanto no nível objetivo quanto no
inconsciente de Bill. Nos mínimos detalhes, vemos que tudo aconteceu como em
uma “construção”, em que cada tijolo é cuidadosamente colocado em seu devido
lugar. Ele estava preparado para esta ocorrência triunfal, para essa
iluminação, para essa experiência de conversão, para esse despertar espiritual,
para essa delirante realização de quem tinha planos megalomaníacos. Em nível
objetivo, encontramos mais de uma afirmação sobre sua capacidade de planejar e
prever os acontecimentos. Ele mesmo comentou que uma das coisas que mais o
agradavam era estudar e planejar um acontecimento e depois se extasiar com sua
comprovação. Depois foi seu amigo Tom, que dizia que Bill não só planejava
detalhadamente, como também só pensava alto. Por fim, na página 273 de sua
biografia (L.A.), podemos encontrar a seguinte sentença: “Com a sua
característica capacidade de previsão (ele estava sempre olhando para frente),
Bill não só havia esperado que aquilo acontecesse como também havia se
preparado antecipadamente para aquela situação”. Não se pode descartar ainda
que, depois dos acontecimentos, esses eventos fossem justapostos para fazer o
sentido que ele queria dar a entender.
É importante frisar algumas observações de Russ, um destacado membro de
A.A., da absoluta confiança de Bill, tendo inclusive morado em sua casa de por
mais de um ano. Disse Russ: “Naqueles dias, os argumentos de Bill nem sempre se
sustentavam. Ele tinha um ego imenso. A maioria de nós era egoísta, mas ele o
era tão tenazmente que, se desejasse alguma coisa, essa coisa virava verdade.
Bill começava pela conclusão. [...] Ele partia de uma premissa falsa e seguia
passo a passo um raciocínio lógico até chegar à conclusão da qual partira’.
Embora fosse muito mais esperto do que a maioria das pessoas, Russ afirmava que
ele ‘ficava perdido’ quando queria algo intensamente, tornando-se disposto a
‘desviar um pouco as coisas’” (L.A., p. 180-181).
Outro destaque que julgamos de suma importância são observações feitas
pelo repórter do Post, Jack Alexander, que gozava de grande reputação
nacional. A princípio, Alexander foi investigar Alcoólicos Anônimos, intrigado
por que a instituição “tinha relação tanto com a religião quanto com
Rockefeller” (L.A., p. 269). Jack acabou se tornando um grande
divulgador do A.A. e até chegou a ser um dos Custódios da irmandade. As duas
citações que fazemos em seguida estão às páginas 269 e 270 do livro L.A.:
“É um tipo que desarma qualquer um e é especialista em doutrinar, usando a
psicologia, a psiquiatria, a fisiologia, a farmacologia e o folclore do
alcoolismo”. “A percepção inicial de Alexander era correta: Bill era cândido,
mas sua candura nada tinha de ingenuidade ou de estupidez; era proposital e
atingia seus objetivos.” Ou seja, Bill era um emérito manipulador com inegável
talento de ator. Prestem bem a atenção que estas observações sobre a
personalidade de Bill não vieram de críticos ou de irados detratores, mas de
colaboradores dignos de respeito e credibilidade.
Um detalhe em particular também é intrigante e chama-nos a atenção:
antes de ele gritar “Se é que Deus existe, que se revele!”, houve a seguinte
afirmação: “Sem nenhuma fé ou esperança, ele gritou”. Essa afirmação contradiz
o que normalmente os teólogos discorrem sobre quando acontece um milagre: a
ideia de que é preciso a fé para que ele aconteça. Sintetizamos nossas
pesquisas a respeito de tão polêmico assunto com uma frase que encontramos
frequentemente nos tratados teológicos consultados: a fé é uma exigência básica
para se obter uma cura milagrosa. Aliás, nesse sentido, Bill contrariou os
interesses e pensamentos de muita gente ligada a seitas e religiões,
despertando-lhes a ira, primeiro, por não os ter satisfeito em suas doutrinas,
e segundo, porque se sabe que está exatamente na fé a causa que produz o
inusitado.
O milagre afiançado por Bill foge completamente à construção descritiva
teológica que as religiões e os teólogos apresentam: da maneira como foi
colocado, ele quer sugerir que o milagre (a manifestação de Deus) teria
acontecido sem fé – portanto sem se acreditar –, como se ele viesse de algum
outro lugar, obedecendo a um mecanismo desconhecido e pré-determinado.
Ainda quanto à alucinação, segundo G. J. Ballone (2006), “os enfermos
delirantes são capazes de discorrer com uma lógica impecável, não se tratando
de perturbação no juízo já formado, mas de algo que precede a formação desses
juízos”. E aqui, novamente o achado científico cabe como uma luva para o caso
de Bill.
CID-F10.3: Síndrome de Abstinência do
Álcool
Voltemos aos transtornos provocados pelo uso do álcool, no que se
refere à síndrome (estado) de abstinência, CID-F10.3. O termo Síndrome de
Abstinência do Álcool (SAA) foi proposto por Edwards & Gross (1976), dentro
do conceito síndrome de dependência do álcool, e se refere aos sintomas e
sinais da reação do organismo dependente à falta de álcool. Ela se dá quando uma
pessoa em estado adiantado de dependência e bebendo seguidamente durante um
longo tempo de repente para de beber ou reduz consideravelmente a quantidade
que bebia regularmente. Portanto, ela se inicia logo depois que o indivíduo
parou de beber[1], e normalmente os sinais e
sintomas mais comuns são: calafrios, sudorese, tremores – principalmente nas
mãos –, insônia, anorexia, dores generalizadas, disfunções intestinais,
câimbras, náuseas, vômitos, confusão mental, formigamento nas extremidades dos
membros, taquicardia, irritabilidade, aumento da pressão arterial, febre,
disforia (ansiedade, depressão e inquietude), aumento da frequência
respiratória, alucinose alcoólica (alucinações ou ilusões visuais, táteis ou
auditivas, transitórias), e até delirium tremens, que é a forma mais
grave da síndrome de abstinência. Pode haver risco de morte se o indivíduo for
acometido por convulsões, pois há relatos sobre essa possibilidade. O delirium
tremens, quando aparece, surge de dois a quatro dias após a ingestão do
último gole.
Os sinais e sintomas da Síndrome de Abstinência, associados ou em parte
deles, persistirão por seis a oito semanas, em sua maioria. Alguns levam mais
tempo, sendo contadas experiências de prevalescências de até um ano, mas nesses
casos, apenas um ou dois sinais persistem e vão se abrandando com o passar do
tempo.
No caso da dependência de álcool, são comuns dois tipos de alucinações:
1) a alucinose alcoólica, que é transtorno da percepção que se instala em
consequência do estado crítico do paciente. Ela pode acontecer quando ele está
plenamente consciente, inclusive com capacidade de entender e de criticar o que
está se passando com ele, ou então pode acontecer quando o indivíduo parou de
beber há algum tempo. Essas alucinações podem ser auditivas e verbais; e 2) as
alucinações provenientes do delirium tremens. Neste segundo caso, o
transtorno ocorre na fase de abstinência e inicia-se normalmente setenta e duas
horas após o início da abstinência, embora possa aparecer até sete dias após
esse início. São comuns alterações da cognição (processos mentais de
conhecimento, percepção e raciocínio), da memória e da atenção, bem como
desorientação têmporo-espacial, em que as alucinações visuais aparecem com
frequência. Ocorrem também as zoopsias (visão de animais). Especialistas
informam que se deve suspeitar que haja delirium tremens em todos os
casos de SAA em que o paciente tenha agitação, pressão arterial acima de
140/90mm, frequência cardíaca maior que 100 bpm e temperatura acima de 37°. O
tratamento usualmente é feito com benzodiazepínicos, o que pode representar
riscos bem maiores que os benefícios, devido à interação de substâncias
psicoativas[1]. Embora grande número de casos
não seja diagnosticado, o número de óbitos é elevado, variando de 5% a 15% dos
casos (Maciel e Kerr-Correa, 2004). O medicamento referenciado inexistia à
época de Bill, que foi tratado com beladona e meimendro 20, hoje vistos com
reservas, uma vez que são drogas perigosas – na interação com álcool são
explosivas – e ainda usadas para distúrbios convulsivos e na indução de
anestesia geral.
Transtorno Bipolar do Humor
O Transtorno Bipolar do Humor, ou simplesmente TBH, também conhecido
como Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), até pouco tempo atrás, era chamado de
Psicose Maníaco-depressiva (PMD). Atualmente a forma mais adequada (embora não
seja a mais usada) para se referir a ele é Espectro Bipolar. Trata-se de uma
doença que se caracteriza por alterações no humor ou no afeto, com episódios de
euforia, seguidos por episódios de depressão ao longo da vida. Na euforia,
temos agitação psicomotora, ansiedade, insônia, discurso e pensamentos
acelerados com fugas de ideias, anorexia, irritabilidade, impulsividade, ideias
de grandeza, aumento das atividades produtivas ou prazerosas, aumento da libido,
prejuízo da crítica e juízos expressos fora da realidade. Ainda segundo
Ballone, pode-se considerar: autoestima inflamada, grandiosidade, sensação
de ser mais e melhor que os outros e, algumas vezes quando tem delírio,
reconhecendo ser predestinado a alguma coisa muito importante. Na fase
depressiva, verifica-se a presença de melancolia, com perda de prazer e
interesse pelas atividades rotineiras, lentificação psicomotora, perda de
energia, pensamentos negativos e ideação suicida.
Embora seja uma doença de ordem psiquiátrica complexa, com quadro
clínico variado, sua forma clássica tem sido facilmente diagnosticada com
sintomatologia mais consistente ao longo da história da psiquiatria. As
alterações, ou ciclos dos episódios de humor, são bem caracterizadas. Até
recentemente, aceitavam-se as classificações do TBH dos tipos I e II, mas com a
moderna concepção do Espectro Bipolar, as variações estão sendo estendidas para
os tipos III e IV, e correspondem à intensidade das alterações do humor, ou
afeto, como preferem uns.
A Dra. Giuliana Cividanes, autora do primeiro trabalho brasileiro que
analisou a associação do TBH com transtorno por uso de álcool, afirma que no
período de euforia, os indivíduos dificilmente são controlados, mas depois se
sentem abalados, ao perceberem o que aconteceu. Cividanes publicou, em
colaboração com R. Laranjeira e M. Ribeiro, um trabalho na Revista de
Psiquiatria Clínica, em que afirma que o uso de substâncias psicoativas por
dependentes de álcool é extremamente comum e mais frequente do que o observado
na população geral (Kessler, 2004), mesmo quando o consumo de álcool e/ou
drogas é considerado de baixo risco ou moderado. (ver:
www.scielo.br/scielo.php?pid).
Nesse sentido, “um aspecto altamente relevante é que é frequentemente
difícil saber em pacientes com transtornos de humor mono ou bipolares,
persistentes ou não, com episódios maníacos, depressivos ou mesmo distimia,
quando tais transtornos são causa ou se os sintomas apresentados são
consequências do uso ou da dependência de álcool” (Seibel e Toscano Jr., 2000).
O célebre astrofísico Carl Sagan, já falecido, também nos dá sua
valiosa colaboração sobre TBH e efeitos do álcool, e até atiça nossa
curiosidade em pesquisar sobre outras substâncias, como as endorfinas e encefalinas,
para o caso dos dependentes. “Todos nós, é claro, sabemos que o comportamento é
modificado pelas moléculas. Seres humanos no mundo todo já tiveram experiências
com substâncias como etanol, que certamente produziram mudanças no
comportamento, nas atitudes e na percepção do mundo. Sabemos que
tranquilizantes também fazem isso. Mas analisemos um caso bem específico, o da
síndrome maníaco-depressiva. É uma doença terrível. O maníaco-depressivo oscila
entre dois extremos, e para mim é difícil dizer qual é o mais apavorante: o
mais profundo desespero e uma exaltação enlevada em que tudo parece possível –
a ponto de muitas vítimas dessa doença, quando estão no extremo maníaco do
pêndulo, acreditarem ser Deus. E obviamente é uma coisa incapacitante. [...] Não
só o etanol, mas a cafeína, os cogumelos, as anfetaminas, o tetraidrocanabinol
e outros canabinóis, a dietilamida do ácido lisérgico – conhecida como LSD – os
barbitúricos, a clorpromazina. É uma lista enorme. Isso levanta algumas
dúvidas: seriam todas as emoções humanas até certo ponto determinadas por
moléculas? Se uma molécula externa ingerida é capaz de mudar o comportamento,
será que não existe alguma molécula interna comparável que possa mudar o
comportamento? É um campo em que tem havido grandes avanços. Estou falando
sobre as encefalinas e as endorfinas, que são pequenas proteínas do cérebro”
(James, 1986, p. 198-200)
Qualquer pessoa dotada de um mínimo de raciocínio pode compreender
perfeitamente que o conjunto dos fenômenos psíquicos apresentados por Bill se
identifica cabalmente com os achados científicos pertinentes. E entre aqueles
(religiosos e teólogos) que acreditam em milagres, e em intervenções divinas, a
história de Bill é incongruente com suas crenças e dissonante com as doutrinas
cristãs.
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