Uma
das ideias que Bill absorveu de Jung trouxe sérias consequências para todos os
dependentes de álcool, que padecem até os dias de hoje, devido às implicações advindas
dela. Essa ideia foi a afirmação irresponsável de que a doença da dependência
de álcool é espiritual, ou de origem espiritual, propagada pelo A.A., que Jung
endossou. Como veremos adiante, Jung fez isso na carta que respondeu a Bill,
propondo uma premissa completamente forçada. Os endossos e afirmações de Carl Jung,
nesse sentido, nos fazem entender o porquê das indignações de Richard Noll com
as ideias sem fundamento que ele divagava, sempre danosas para a ciência. O
pior são as terríveis consequências dessas divagações ilógicas, para milhões de
seres humanos. No caso do inconsciente coletivo e dos arquétipos, as
consequências apontadas com muito equilíbrio e autoridade por Noll, ainda que
muito danosas, ficam minúsculas perto desta desqualificação da doença, feita
por Jung. Desqualificar a doença de biológica para espiritual, distorcendo sua
causa, desvirtua também a terapêutica para a dependência de álcool, provocando
enorme prejuízo para milhões de dependentes.
Com
o oportunismo peculiar, destacado ao longo de todo o livro O culto de Jung,
por Noll, o teórico suíço aproveita-se das insinuações descabidas de Bill para imiscuir
suas teorias. Antes de dizê-lo a Bill na carta, porém, justificou-se que não
havia transmitido a Rowland um aspecto de sua recomendação, porque havia descoberto
que estava sendo mal interpretado no que dizia. Depois de dizer a frase “A sua
fixação[1]
pelo álcool era o equivalente, em nível mais baixo, da sede espiritual do nosso
ser pela totalidade, expressa em linguagem medieval, pela união com Deus”,
ponderou com esta outra frase: “Como poderia alguém expor tal pensamento sem
ser mal interpretado em nossos dias?”. Bem, na primeira frase, Jung começa com
um absurdo, ao dizer que dependência de álcool é fixação. Ainda que dissesse
ser uma fixação oral, não concordaríamos, pois hoje se sabe que a dependência
de álcool advém de várias causas combinadas. E depois reporta sua teoria
“helenística, indo-ariana”, que ele chama de linguagem medieval, ao dizer que a
dependência de álcool seria a “sede espiritual do nosso ser pela totalidade” –
pela união com Deus. Ele, sim, ao criar uma teoria teológica, mostra sua
fixação em criar uma religião. Uma religião para poder se salvar, diga-se de passagem.
Sua busca frustrada em ser uno com Deus, ter Deus dentro de si, conforme já
vimos. Ou seja, além de ordem espiritual, a dependência seria espiritual no
nível do inconsciente coletivo. Um disparate!
Ninguém
é alcoólico por ter sede espiritual pela totalidade. Por não ser uno com Deus.
Isso não passa de retórica completamente destituída de razão, e isso está mais
para crendices preconceituosas medievais. A dependência de álcool, conforme
veremos no capítulo “A doença”, conta com dez CIDs catalogados pela OMS, e
nenhum deles, envolve crenças religiosas. E depois Jung ainda vem dizer, ao que
expor tais pensamentos naqueles dias, estaria sendo mal interpretado. Mesmo nos
dias atuais, Jung não está sendo mal interpretado; ele está sendo bem
interpretado, ainda que isso signifique considerá-lo como um tremendo
presunçoso e tendencioso, como bem mostra Noll. Com os conhecimentos
científicos atuais sobre a dependência de álcool, fica muito mais fácil “bem”
interpretar Jung hoje, e constatar toda a sua ardileza. Toda a sua infeliz
especulação.
Lembrem-se
de que Jung afirmou que o inconsciente coletivo conteria toda a herança
espiritual da evolução da humanidade, e essa sede espiritual a que Jung se
reporta é herança que não se originou hoje. Com isso, Jung fez uma associação
completamente oportunista, sem nenhum embasamento, coisa de se lamentar profundamente.
E depois, ao afirmar que “expor tal pensamento sem ser mal interpretado em
nossos dias” equivaleria a ter pretensões proféticas, um visionário futurista.
Mas como dizem, o tempo é o senhor da razão: suas palavras em nossos dias, não
só denotam seu equívoco, como também o esvazia de suas pretensões como profeta
e salvador. Nesse ponto se iguala a tantos outros fanáticos que propuseram a
salvação (redenção) de seus seguidores, mas em vez disso, acabaram por
arruiná-los. Contudo, o que é pior mesmo é o estrago que essa ideia infeliz,
açambarcada por Bill, vem provocando em milhões e milhões de dependentes de
álcool ao longo desse tempo todo, o que explicaremos no momento oportuno. Jung
consegue desagradar a todo mundo, à exceção de seus fiéis seguidores,
evidentemente. Porque a ideia teológica de Jung - farsa na opinião de Noll -
bate frontalmente contra qualquer lógica ou possibilidade.
Logo
abaixo, depois de explicar ainda mais, de maneira preconceituosa e discriminatória,
como um ser humano contrai a dependência de álcool, Jung conclui
apoteoticamente, aguçando ainda mais suas conjecturas ilógicas, ao explicar:
Veja você, “álcohol” em latim significa “espírito”, e você, no entanto, usa a
mesma palavra tanto para designar a mais alta experiência religiosa como para
designar o mais depravador dos venenos. E em seguida acrescenta: A receita
então é “spiritus” contra “spiritum”.
A
conceituação de Jung é inepta, desprovida de qualquer conteúdo objetivo ou
pragmático. Para nós, essas alegações são pura semântica, com o único intuito
de justificar sua proposição para a teoria da doença espiritual de origens
reportadas ao inconsciente coletivo. Semântica, porque dizer que alcohol
em latim significa “espírito” é apenas uma questão de linguística, um jogo de
palavras, já que etimologicamente a palavra álcool vem do árabe al-kuhul[1].
Não só a palavra, mas também a própria bebida e o alambique são de origem
árabe. Embora haja vestígios arqueológicos dando conta de que os egípcios
tenham produzido um aparelho parecido com o alambique, esse equipamento, como é
conhecido, só foi desenvolvido no ano de 800 D.C. pelo alquimista árabe Jabir
ibn Hayyan. A própria palavra alambique vem do árabe “al ambic” cujo significado
vem de “algo que refina, que transmuta”.
No
século X, o astrônomo, médico e filósofo árabe,[1] de nome
Abu Ali al-Husain ibn Abdallah ibn Sina, ou simplesmente Avicena (980-1063),
inventou o processo de destilação a partir da bebida fermentada. O resultado da
destilação, em sua maior parte, é o álcool etílico, e a forma de bebida
destilada. Al-kuhul originalmente significava “fina poeira”, referindo-se ao
antimônio, que era cosmético usado pelos egípcios. Posteriormente passou a
designar qualquer “essência”, como o álcool. Donde “essência” pode ter passado
a significar “espírito”, em latim, uma vez que essência poderia significar
“exalação”, como veremos logo abaixo.
Ainda
com respeito à origem da bebida e da palavra álcool, num trabalho
assinado por Marcus Valério XR (1971), disponível em www.xr.pro.br/Ensaios/Drogas.html,
ele informa que: “No entanto para eles (árabes)[1] a
palavra atualmente é Al-Ghawl, em inglês The Ghoul, literalmente ‘o
espírito/fantasma’. O próprio Alcorão contraindica fortemente o uso de álcool,
e sendo assim, os mulçumanos são abstêmios. Talvez isso seja devido à percepção
que os árabes têm de seu próprio vocabulário. Eles foram os precursores do
Álcool, e também os primeiros a abandoná-lo. E de acordo com uma interpretação
comum no Islã, similar a interpretações comuns na Bíblia, esse ‘espírito’ no
caso, AL-GHAWL, pode ser traduzido como: O DEMÔNIO” (sic).
Como
se pode notar, o espírito que se refere à origem da palavra não significa “a
mais alta experiência religiosa”, e sim coisas de “conteúdo” mundano mesmo e,
se se quiser usar essa palavra para se referir às coisas transcendentais,
certamente se remeteria a fenômenos fantasmagóricos ou demoníacos.
A
palavra álcool em latim não tinha um significado original ou
tradicional, e só foi incorporada ao vocabulário daquela língua nos tempos
modernos. Ao que nos parece, estava ligada à sua condição química de
volatilidade, na relação exalação-essência, e a partir daí, a uma significação
relativa ao álcool propriamente dito. Para corroborar nossas suposições,
fizemos um perípato por bibliotecas públicas e particulares, e podemos assim
resumir o teor dessas pesquisas como segue.
Nos
dicionários publicados até a data da correspondência entre Bill e Jung,
consultados (em todos eles), tanto nos Latim-Português quanto nos
Português-Latim, não encontramos a palavra álcool. Nos dicionários
Latim-Português, há praticamente um consenso, ao se constatar o significado da
palavra spiritus, que adiante podemos assim exemplificar:
SPIRITUS,
-ús, subs. M. I – Sent. próprio: 1) sopro, vento, hálito, respiração, exalação
(Verg. Em. 12, 365). Daí: 2) O ar (Cic. Amer. 72). II – Sent. Figurado: 3) Suspiro (Hor. Epo. 11, 10). 4) Inspiração,
sopro divino, gênio, espírito criador (Hor. O. 4, 6, 29). 5) Espírito,
sentimento (T. Lív. 2, 35, 6). 6) Ira, cólera, arrogância, orgulho, presunção
(Cic. Phil. 8,24). 7) Espírito, alma (Ov. Met. 15, 167).
O
dicionário mais recente que tivemos acesso foi o Dicionário de Latim- Português,
da Porto Editora, de Portugal (2ª edição, de 2001), cujos significados para a palavra
spiritus são bem mais amplos, e nem por isso, entre elas encontra-se a
palavra álcool.
Já
nos dicionários Português-Latim também não encontramos a palavra álcool, e onde
poderia se encontrá-la, caso existisse, encontram-se as duas palavras (seria
entre elas, portanto): ALCÔFA e ALCOVA. No Dicionário de Português-Latim,
da Porto Editora (2ª edição, de 2000), entre as palavras alcofa e alcova
aparecem ainda as palavras alcoice, alcorcova e alcouce.
Na nossa pesquisa sobre a bebida ou o hábito de beber, nada foi constatado que
as relacionasse a spiritus, conforme segue abaixo.
BÊBEDO,
adj. Ebrius,a,um; vinolentus,a,um; temulentus, a, um; vinosus,a,um; tudo
retumbava com os gritos dos bêbedos: personabant omnia vocibus ebriorum:
palavras de bêbedo : ébria verba; olhos lânguidos (de quem bebeu muito) : ebrii
oculi.
BEBEDOR,
s. m. Potor,oris; potator,oris; vinosus,i; aquele que gosta de beber: bibendi
avidus; bebedor de vinho : vini potator ou bibo, onis.
BEBER,
v. t. e i. Bibere; potare; hourire; beber vinho: bibere vinum; beber de um só
trago: bibere pro summo; água boa para beber: aqua idônea potui; beber até
perder a noção das coisas: vino se sepelire.
BEBERAGEM,
s. f. Potus. Us; beberagem medicinal: potus medicus.
BEBERICAR,
v. t. e i. Sorbillare; potitare.
BEBIDA,
s. f. Potio.onis; potus, us; dar alguma bebida para tomar: dare aliquid potui.
(Dicionário
Português-Latim, p. 98 e 43).
Apenas
conseguimos encontrar a palavra álcool, correlacionada a spiritus
- numa suposta etiologia, que acima postulamos -, no livro Sintaxe Latina,
coincidentemente publicado em 1961, portanto, novíssimo para todos daquela
época, inclusive para Jung. Naquele livro, cujo capítulo tem como título
“Vocabulário de termos mais usuais e modernos”, em que constam várias palavras
modernas para a época, tais como aeroporto (aeroportus, us; aerodromus, i.) ou
Altofalante (megaphonium, ii; vocis amplificator, oris.), deparamos com a
exegese:
Álcool,
spiritus, us, m.; potior vini sucus; praecipuum vini elementum.
Assim,
diante dos fatos e documentos, podemos seguramente afirmar que a colocação
feita por Carl Jung foi forçada. Forçada intencionalmente para forjar uma
realidade que seria incontestável, e a partir daí construir uma frase de efeito
que, com esse suposto lastro endossante, pudesse significar uma verdade
científica. E que acima de tudo, fosse plenamente coadunada com sua teoria do
inconsciente coletivo e dos arquétipos, para ele, cientificamente perfeita e
incontestável, contudo, taxada brilhantemente por Richard Noll como uma
aberração ética, uma das maiores farsas que a humanidade já viu.
Assim
como Noll vê a farsa protagonizada pelo Jung, num intrigante emaranhado de
manipulações intelectual e cuidadosamente articuladas, ele chega a citar o
seguinte trecho em seu livro: “A história simplesmente não é o pão dos fiéis, e
é mesmo verdade que ‘o mundo quer ser enganado’, como certa vez disse Jung a um
colega que pusera em dúvida suas alegações” (NOLL, 1996, p. IX). Pode-se até
dizer que a maioria das pessoas quer ser enganada, mas generalizar de tal forma
é arroubo. E mais, há muita gente que ama a verdade e busca-a com afinco.
Agora, dizer tal disparate, vindo de alguém que se intitula como cientista, é
no mínimo aético.
Vimos
que Bill não agiu muito diferente de Jung, e mais adiante, vamos mostrar uma
síntese de suas insinuações induzindo que ele era messiânico. Ambos
protagonizaram (ainda que não protocolar, como está demonstrado nas cartas) um
pacto tácito de endosso e apoio mútuo. O objetivo seria a potencialização
recíproca para a ascensão de seus movimentos carismáticos, em que apenas eles
(seus beneficiários e correligionários) ganharam, à custa do sofrimento e
engano de milhões de seres humanos. O caso de Bill, em termos de danos a
terceiros, é ainda bem maior, porque engana não só os adeptos do A.A., como
ainda ajuda a estigmatizar os outros 99,7% (aproximados) de dependentes de
álcool que não aderiram a essa entidade dogmática. O estigma de Bill e A.A. faz
com que um extraordinário contingente de dependentes desista até mesmo de
procurar outros caminhos para se tratar. Parece que não foi um mero acaso a
aproximação dos dois; ambos tinham personalidades, mentes e objetivos afins.
Infelizmente.
Richard
Noll, por várias vezes em seu livro, observou que as teorias de Carl Jung
tinham em primeiro plano o objetivo de se contrapor ao cristianismo que ele
tanto odiava[1].
Ao associar ardilosamente o álcool a uma dicotomia dialética ao estilo
platônico, esse álcool “que tanto podia designar a mais alta experiência
religiosa ou o mais depravador dos venenos”, Jung bem provavelmente pretendia
(além do pacto subentendido com Bill) alfinetar o cristianismo. Isso se daria
através da depreciação de um dos sacramentos preconizados por Jesus Cristo na
última ceia, a ingestão de vinho, e que é parte dos rituais de algumas
religiões cristãs, principalmente da Igreja Católica, representado pelo
sacramento da comunhão na missa.
Lembrem-se
os leitores das citações que fizemos das páginas 207 e 208 do livro O Culto
de Jung. Repetiremos aqui dois pequenos trechos:
“Penso que precisamos dar à psicanálise tempo
para infiltrar-se entre pessoas de muitas áreas, reviver entre os intelectuais
o sentimento do símbolo e do mito, aos poucos retransformar Cristo no
profético deus da vinha e, por aí, assimilar as arrebatadoras forças
instintuais do cristianismo, com o único propósito de fazer do culto e do mito
sagrado o que eles já foram: um festim bêbado de alegria em que o homem
recupere o etos e a santidade do animal [o grifo é nosso]. Era essa a
beleza e o objetivo da religião clássica, e só Deus sabe quais necessidades
biológicas passageiras a transformaram num Instituto da Aflição.” [...]
“precisa surgir dentro do cristianismo, converter em realidade seu hino de
amor, a agonia e o êxtase em face do Deus morto e renascido, o poder místico do
vinho, a impressionante antropofagia da Última Ceia – só esse desenvolvimento
ético pode desempenhar o papel das forças vitais da religião”.
Vejam
até onde Bill meteu os dependentes de álcool. Bill não conhecia Jung nem a sua
forma de abordagem aos dependentes de álcool, mas achou que poderia criar algo
de novo que o colocasse no centro do palco. Não só conseguiu como ainda
provocou, com suas mirabolantes ideias, meter os dependentes no antigo ódio de
Jung pelo cristianismo. E este não hesitou em criar um silogismo malicioso para
atiçar os dependentes na sua louca disputa religiosa. Antes de prosseguir no
esclarecimento da querela de Jung com os cristãos, é preciso destacar um
importante fenômeno que se constata: a facilidade como um líder enfia
empulhação na cabeça de seus seguidores, partidários ou correligionários. Neste
caso de Bill, a aberrante contradição está registrada em um mesmo livro,
separada por poucas páginas. As vociferações raivosas de Bill contra Jung,
desqualificando-o completamente, estão, como já vimos, no livro A linguagem
do coração, nas páginas 114-116, e as bajulações, enaltecimentos e o
pseudovínculo, estão registrados nas páginas 325-329, Da parte dele, é muita
cara de pau, da de seus seguidores, é cega ingenuidade. Fanatismo.
As
pretensões de Jung quanto à fomentação das suas ideações anticristãs são bem
explícitas. Na argumentação para Freud, acima, ele diz coisas como infiltrar-se
entre pessoas de muitas áreas para “retransformar o Cristo no profético Deus da
vinha”. Compara Jesus com Baco ou Dionísio (os deuses do vinho – o primeiro
romano e o segundo grego). Compara os cristãos da época com um “festim bêbado”.
Relaciona Jesus, o “Deus morto e renascido”, com “poder místico de vinho”, e o
último encontro de Jesus com seus apóstolos chama de “impressionante
antropofagia da Última Ceia”. Veja que Jung compara a “comunhão” dos católicos
com antropofagia, ou seja, canibalismo. É por isso que Jung não se conformava
com o irracionalismo religioso. Se Jung não conseguiu (como desejava)
infiltrar-se em diversos segmentos da sociedade (sua) contemporânea para
plantar suas teorias, com Bill conseguiu-o com extrema facilidade. A sanha de
homens inconsequentes como Bill e Jung criou um mito que acabou por se tornar
talvez no maior algoz das vítimas do álcool: a estigmatizante doença
espiritual.
Desdobramento da relação de Bill com Jung: o caso
Wylie
Em conformidade com o que havíamos dito anteriormente, vamos estender
esse assunto mais um pouco, esclarecendo a nebulosa relação de Bill com Carl
Jung. Neste momento veremos as contraditórias versões que Bill apresentou na
avaliação da obra do psiquiatra. Como vimos na sessão anterior, Bill não só
apoiava as ideias de Jung, como disse que elas foram fundamentais para
estabelecer a ideologia de A.A. Contudo, noutro momento anterior, Bill as
abominou e se denuncia por isso. Neste desdobramento do caso Jung, fica notória
a ambiguidade de Bill e sua disposição para forjar fatos, iludir e subestimar a
inteligência dos outros. Para a consecução desse objetivo, tomaremos como base
o livro A linguagem do coração, que convencionaremos chamar pelas
iniciais L.C. Este livro é uma obra que reúne artigos escritos por Bill
para a Revista Grapevine que, por sua vez, é uma publicação que serve
como meio de comunicação oficial de Alcoólicos Anônimos. Nesta fonte de
pesquisa deparamos com achados muito importantes, que colocam mais luz nessa
questão.
Nossas atenções se voltam principalmente para um artigo em especial,
intitulado “Comentários sobre as ideias de Wylie”. O artigo é datado de
setembro de 1944, inicia-se ao final da página 114 e vai até a página 116 do
mencionado livro. Trata-se do depoimento de um escritor, e Bill diz que era
ator, também um ator conhecido. Wylie se livrou do álcool por conta própria,
contando com a ajuda de Carl Gustav Jung. Como não precisou de A.A., o feito
incomodou Bill, levando-o a exasperar-se. Em seu enunciado, com destaque, se
lê: “Em um artigo intitulado ‘Philip Wylie Espeta uma Agulhinha no
Convencimento’[1], o renomado autor diz que é um
alcoólico que ‘deixou de beber sem ajuda’. Em seguida, cita a psiquiatria e outros
recursos científicos como fatores que contribuíram para mantê-lo sóbrio. O que
segue é a resposta de Bill.” Antes de descrever o artigo de Bill, vamos
transcrever o texto assinado por Wylie, que deu origem à intempestiva
manifestação do cofundador de A.A., para se ter uma dimensão mais aproximada do
que realmente aconteceu.
Na verdade, Wylie foi convidado pelo editor da Revista Grapevine
para escrever um artigo que o encarregado da revista julgava ser de interesse
dos adeptos da irmandade. A tarefa foi aceita atenciosamente e elaborada de
maneira comedida, dotada de bom senso e tudo dentro dos padrões éticos
aceitáveis. No artigo não há nada que pudesse infligir quaisquer regras
literárias ou mesmo do relacionamento humano. Contudo, Bill se deixou ferir
pelas opiniões de Wylie, já que elas por si só não teriam conteúdo ou motivo
suficiente que pudesse magoar alguém. Feriram, sim, a vaidade e os interesses
egoísticos de Bill. Na visão externada dele, fica entendido que ninguém, a não
ser ele mesmo, teria autoridade para tratar do assunto. Nesta ocasião, mostra
mais uma vez que a tarefa de falar publicamente e ter opiniões sobre a
dependência de álcool seria monopólio seu e de A.A., ainda que tenha dito
diferente. Para Bill, Wylie foi longe demais, mesmo porque, além de ter
conseguido resolver seus problemas com o álcool pelos seus próprios meios,
ainda se achava no direito de emitir pareceres sobre o assunto. Sobre A.A., a
quem inclusive se referiu com respeito, Wylie conseguia passar uma ideia que as
pessoas poderiam receber de maneira positiva. Ao tomar conhecimento do texto de
Wylie, Bill se deu o direito de rechaçá-lo com muita ironia e autossuficiência,
na mesma edição da revista. Vale dizer que aqui, neste caso, que não aparece na
biografia autorizada de Bill, não há como dissimular os fatos, pois inexistem
biógrafos para enaltecer a “candura” de Bill e sua disposição para aceitar
críticas.
Quanto ao artigo de Wylie, publicado pela Grapevine, tivemos
acesso a ele pela internet, mediante pagamento de quatro dólares, com o débito
no cartão ficando em R$ 7,72, a crédito de GV INC (que deve ser o nome jurídico
da revista). Se se levar em conta que esse valor é aproximadamente o
equivalente ao preço das melhores revistas periódicas brasileiras de
informação, cultura e entretenimento, podemos dizer que o valor pago ao
Empreendimento A.A. foi extorsivo. Pagamos este valor só para ter acesso a um
único artigo. Aliás, eles não disponibilizam apenas uma consulta; cobram por um
período mínimo de um mês, para justificar assim o valor exorbitante. Cobranças
essas injustificadas, se forem levadas em conta as alegações de que tudo isso é
importante para acudir os dependentes de álcool que sofrem. A.A. possui rendas
além do justificável e suficiente, e vender o acesso à revista é apenas mais uma
maneira de vender o 12º Passo e de atender aos objetivos reais de faturamento da
entidade e seus beneficiários. Pagamos à matriz americana, já que as filiais
brasileiras de A.A. não disponibiliza o material, cujo título original é
“Philip Wylie Jabs a Little Needle Into Complacency”. O artigo foi gentilmente
traduzido pelo professor de Literatura de Língua Inglesa, Luís André
Nepomuceno. A livre tradução é a que segue:
Um editor do Grapevine me chamou e me pediu que escrevesse um artigo.
Pediu-me porque eu tinha recentemente feito a crítica de um livro sobre alcoolismo,
de Charles Jackson, chamado O final de semana perdido. Havia ele pensado
que o que eu tinha dito na crítica mostrava que eu revelava interesse por
alcoólatras. Eu tenho. O editor não sabia que eu sou um deles. Parei de beber
sozinho, e quero com isso dizer que estive sem um grupo organizado como o A.A.
para me aconselhar. Mas eu tive muita assistência e conselhos de pessoas
experientes no assunto, e que curiosamente se identificam muito com o que sei
sobre o A.A. Para chegar a ponto de dizer que parei de beber ou que não bebo há
muito tempo, levou anos. Precisei de uma energia inimaginável. E isso me deixou
com algumas ideias que eu gostaria de passar adiante, e ainda com algumas
suspeitas que eu gostaria de levantar.
As coisas que eu fiz são talvez as coisas que muitas outras pessoas
fizeram. Fiz psicoterapia duas vezes. Depois eu mesmo estudei psicologia -
junguiana, freudiana, adleriana, behaviourista. Depois li os livros básicos de
religião. Depois ainda, filosofia. Por fim, entrei num asilo de loucos,
observei-os, e aqui estão algumas ideias que me ocorreram. Uma das razões que
dei a mim mesmo para beber foi que eu podia facilmente fazer algumas coisas que
eu não faria e que outros homens sóbrios podiam fazer. Eu então comecei a fazer
as coisas sobriamente. Fiz sobriamente tudo o que eu fazia quando estava
bêbado, com exceção de algumas coisas que me traziam problemas. E isso me foi
extremamente útil.
Eu tinha crises de ansiedade que não há palavras para descrever, embora
a descrição de Charles Jackson tenha chegado mais perto do que a de qualquer
outro escritor. Cada medo, cada fobia, cada compulsão que estava na minha
cabeça, e isto não era apenas quando eu estava de ressaca. Então eu peguei o
hábito de pôr no papel (sugestão do psiquiatra) descrevendo em detalhes a
natureza deste terrível sentimento de aflição. Talvez o fato de eu ser escritor
deu a este sistema um mérito especial. Mas descobri que eu não podia acabar com
esta horrível obsessão – sentado confortavelmente num quarto tranquilo. No
papel, sentia que as coisas não eram tão imensas e opressivas. Tornavam-se uma
bobagem. E me fizeram rir de mim mesmo e ganhar confiança.
O próprio Dr. Jung sugeriu que eu observasse alguns asilos. Não entendi
por quê, antes de fazer visita a um deles. Ficou claro para mim que meus
companheiros definitivamente não eram iguais a mim. Logo eu descobri que meu
alcoolismo não era o desencadeador da insanidade, e eu tinha medo precisamente
disso.
Os junguianos por acaso dão um nome diferente para a “experiência
religiosa” que vocês discutem no A.A. Eles chegam a esta experiência por outros
métodos – métodos
que estão em conformidade com a técnica científica e psicológica deles. Eles
chamam de “símbolo transcendente” a fração espiritual que gera a própria
experiência. Naturalmente não tenho como descrever aqui este método – eu
precisaria de um livro para falar sobre isso. Mas não importa se você chama
isso de experiência religiosa ou de um símbolo transcendental, e talvez seja do
interesse de alcoólatras (que apenas em parte estão envolvidos em objetar
contra religiões formais e institucionalizadas) entender que há caminhos
totalmente abstratos e não-religiosos para esse mesmo contato humano e
universal, com a integridade interior, verdade e a própria natureza em si.
(assinado no original: Philip Wylie).
A resposta de Bill segue adiante. Vamos transcrevê-la, e inserir nossas
observações – em itálico e entre colchetes – sempre que considerarmos
importantes fazê-lo:
O artigo de Philip Wylie publicado neste número da Grapevine
granjeia a simpatia de cada um de nós AAs. Por quê? Porque ele é tipicamente
alcoólico. [Bill está ironizando o autor, usando o termo “tipicamente
alcoólico”, num sentido pejorativo, para dizer que se trata de coisa de bêbado
– e é mais um daqueles preconceitos de Bill contra os ex-dependentes que já
denunciamos]. Além disso, ninguém alcança, nem de longe, o espírito
generoso e de autossacrifício do autor. Esquecendo sua própria importância
mundana, expressa o pouco que lhe importa a opinião do público; arrisca sua
reputação para compartilhar conosco o seu caráter. [Aqui Bill não só está
ironizando Wylie, dizendo que ele foi generoso e se sacrificou, expondo-se como
um mundano[1],
como também o está difamando, ao dizer que, confessando sua dependência de
álcool, ele estaria mostrando seu caráter, num sentido negativo, pois que está
associando a dependência como se fosse um defeito moral do artista. Como
viajante solitário que logrou sair tateando pela obscuridade, nos conta como
descobriu seu refúgio. Não poderíamos esperar alguém de ânimo mais robusto. O
Sr. Wylie pode se tornar um membro de A.A. no dia em que quiser. [O feito de
parar de beber, sem precisar de A.A, irrita Bill, que taxa o fato como sendo
“tateando no escuro”, já que A.A. seria a única luz. Bill também diz que o
espírito forte e a voluntariedade do protagonista o colocam como digno de ser
membro da Irmandade Anônima].
É tradição entre nós que o indivíduo tenha direito incondicional de ter
a sua própria opinião sobre qualquer assunto que se possa imaginar. Não está
obrigado a estar de acordo com ninguém; pode estar em desacordo com todos, se
assim o desejar. E de fato, ao encontrar-se numa “bebedeira seca”, muitos AAs
ficam assim. [Se a constituição americana dá direito de livre expressão ao
indivíduo, por que Bill não o deixou estar para lá com as ideias dele? Não
teria Wylie a volição ou o direito de discorrer sobre o álcool e sua liberdade
de expressão? Ao mesmo tempo em que diz que o outro tem o direito de se
manifestar, Bill mostra que isso o incomoda, e muito, e que por Wylie agir
independentemente e dar sua opinião naturalmente, isso justificaria Bill dizer
que ele estaria contra as ideias de todos? O “todos” aí significa a pretensão
da ideia totalitária de que o tema da dependência de álcool circundaria apenas
o Bill e o A.A. Desta maneira, quem emitisse opinião que não fosse aceita por
Bill e pela irmandade estaria em desacordo com todos. Segundo essa lógica, Bill
e A.A. seriam donos da verdade, mas ele só estaria de acordo com todos se a
conquista da sobriedade fosse através de A.A. E por isso compara-o com os AAs
que agem como se estivessem bêbados (talvez a expressão fosse muito mais
apropriada para ele mesmo, o Bill, ao reagir incontrolavelmente diante da
vitória e da ideias do outro)]. Portanto nenhum AA tem por que se sentir
desconcertado se não pode estar completamente de acordo com o verdadeiramente
estimulante discurso do Sr. Wylie. [Ao mesmo tempo que prepara os membros de
AA (numa espécie de lavagem cerebral) para discursos que não estejam afinados
com os dogmas da irmandade, dizendo para não se sentirem desconcertados com
isso, Bill continua martelando ironicamente o seu desafeto quanto ao seu
discurso. Depois, para desfazer o incomodante discurso, ele dissimula,
embolando as palavras de forma ambígua]: É mais valioso refletirmos sobre a
diversidade de caminhos que há para a recuperação; que qualquer história ou
teoria de recuperação elaborada por alguém que já tenha andado o caminho
provavelmente terá muito de verdade. [E continua a ironia...] O artigo
do Sr. Wylie é como uma fartura de fruta seca. Talvez devêssemos seguir o
conselho da dona de casa que diz: “Comamos o que pudermos comer, guardemos o
que não pudermos”.
[Ao continuar, Bill chega a um ponto crucial de seu artigo]: O
que mais me chamou a atenção foi a referência quanto à experiência espiritual
“ao estilo de Jung”, aparentemente, produzida “por uma técnica científica
psicológica”. Que benção seria isso para nós, que a cada dia tivéssemos que
lutar com o principiante agnóstico! Se pudéssemos apenas dar-lhe uma boa dose
desse “símbolo transcendental” e, assim, pôr fim ao assunto. Não teríamos que
nos ocupar desse assunto tão cansativo de esperar que nosso candidato chegue
aos tropeções a ter a suficiente amplitude de mente para aceitar a
possibilidade de um Poder Superior a ele mesmo. [Aí Bill demonstra
categoricamente que não conhecia a técnica nem os conceitos teóricos de Jung
naquela época – nove anos após a fundação de A.A. aqui cabalmente ele prova que
tudo foi forçado, inventado, forjado; enfim que foi uma farsa o que em 1961 ele
disse ter se tornado “uma das bases de A.A”, e que ele sarcasticamente chama de
“a experiência espiritual ao estilo Jung”. Essa frase dita em tom de deboche
mostra que, em 1944, Bill não conhecia e desdenhava a teoria de Jung, mas
quando a teoria de Jung ganhou fama, Bill a atraiu para o A.A. como quem puxa a
brasa para sua sardinha, e acima de tudo, retrocedeu no tempo dizendo que ela,
a partir de Rowland, em 1930, passou a ser uma das bases da irmandade. Bill
debocha da experiência espiritual à moda de Jung, afirmando que, se ela tivesse
validade, seria muito fácil, pois, em vez de lutar com o principiante ateu,
bastaria empurrar-lhe goela abaixo alguma coisa pronta, que seria a dose
transcendental. Feito isso, o A.A. não precisaria se desdobrar ao renhir com o
dependente agnóstico para abrir-lhe a cabeça e enfiar lá dentro o Poder
Superior – trocando em miúdos, fazer a lavagem cerebral no candidato]. [Aqui
fazemos uma pergunta que talvez o leitor já tenha feito: E onde está o programa
que é para agnósticos também, já que eles (A.A.) têm que lutar com o agnóstico
para enfiar em sua cabeça o deus de Bill?].
Não obstante, como o Sr. Wylie comenta generosamente, não é muito
importante como se produz a experiência espiritual transformadora, desde que o
indivíduo experimente uma que lhe dê resultados. [Nesse ponto Bill contradiz
não só a ideia apropriada posteriormente a Jung, como também se contradiz com o
outro pé do tripé (também forjado) de sustentação de A.A., que é a validade do
pragmatismo de William James[1]. Pois James teorizava
exatamente isto: a religião intuitiva individual, livremente buscada por cada
um. Para James, a religião individual seria mais importante que a própria
religião institucionalizada. Se funcionasse para o indivíduo, não importava
como ela fosse concebida. Ao dizer com desdém do indivíduo que experimenta uma
que lhe dê resultado, critica a religião pragmática de James, e ainda que ela
dê resultado para o indivíduo, isso não tem nenhum valor para Bill, pois ela
não foi conseguida de acordo com sua cartilha. Sobre essa cartilha, Bill deixa
transparecer que só ele conhecia seus mistérios, como se fosse uma procuração
que Deus lhe passara. Desta maneira, de um só golpe ele faz um juízo
depreciativo e mordaz daquilo que ele mesmo atestou serem os dois pilares de
A.A., exatamente aqueles que alegou ter buscado em Jung e James]. É
necessário que o alcoólico, de alguma forma, ganhe suficiente objetividade a
respeito de si mesmo para apaziguar seus temores e derrubar seu falso orgulho.
Se ele pode fazer tudo isto mediante seu intelecto e, a partir daí, apoiar a
estrutura de sua vida em um “símbolo transcendental”, melhor para ele! Mas para
a maioria dos alcoólicos, esse plano de vida lhes pareceria pouco adequado.[1] Considerariam a simples
humildade e fé no poder de Deus um remédio muito mais forte. O A.A. recorre,
sem vacilar, à emoção e à fé, mesmo que o intelectual científico evite esses
recursos, tanto quanto possa. No entanto, as técnicas mais intelectuais, de vez
em quando, dão resultados, visto que estão ao alcance daqueles que não podem
tomar uma dose mais forte. [Agora Bill sugere que a atitude do ator é um
falso orgulho que precisa ser eliminado, e que não vê como válido o indivíduo
apoiar-se na sua própria razão e nos conhecimentos científicos para sustentar-se.
Bill esquece que os seus próprios métodos vinham exatamente de técnicas
pseudocientífica. Segundo Bill, mesmo que a técnica experimentada por Wylie
funcionasse, seria de maneira superficial, já que isto é para aqueles que não
comportam algo bem mais eficaz e maior, disponível apenas para os eleitos de
A.A. – antes, desdenhou do símbolo transcendental de Jung, esquecendo-se que
ele mesmo criara o símbolo transcendental chamado Poder Superior]. Ademais,
quando nos sentimos demasiado orgulhosos de nossos próprios ganhos, isso nos
lembra que o A.A. não tem o monopólio de resgatar os alcoólicos. [Bill nesta
penúltima frase, insinua que embora A.A. seja a excelência no assunto, o que
muito orgulha toda a comunidade interna, a irmandade não tem como tornar-se
única, e por isso deve ter complacência com outros meros e pretensiosos
métodos, embora demonstre indisfarçavelmente que isso é para ela muito
incomodante e também bastante irritante].
De fato, é evidente que o mundo científico vai tendo cada vez mais apreço
por nossos métodos, mais do que nós temos pelos deles. Neste sentido, estão
começando a nos dar lições de humildade. [Ao final do parágrafo, Bill faz
por onde diminuir a ciência que favoreceu a recuperação de Wylie (e a sua
própria), pois que, ela mesma, a ciência, na sua delirante presunção, está se
rendendo humildemente ao A.A. Deixa nítido que A.A. devota à ciência cada vez
menos consideração – a pretensão de A.A. de estar acima da ciência sobrevive
até os dias atuais, porque não muda seus pressupostos, ainda que seus métodos
fiquem cada vez mais obsoletos e a ciência continue a evoluir a passos largos].
[Por fim, para atirar uma farpa em Wylie, Bill termina citando o Dr.
Harry Tiebout, que enalteceu o trabalho religioso do A.A. em detrimento das técnicas
psiquiátricas, e sua última frase dá o tom dessa declaração, ainda que ela
queira insinuar um efeito inverso, paradoxalmente, como o foi para ele, que se
tornou onipotente com sua pseudoexperiência espiritual]: “Uma experiência
espiritual ou religiosa é o ato de abandonar nossa própria onipotência”
(sic).
Outro aspecto muito interessante trazido à tona nesse episódio é como
Bill se deixava enrolar por seus interesses (reais) não revelados, tnteresses
esses que mudavam de acordo com as circunstâncias. Nesse caso, acabou mostrando
como a incoerência gerou outras incoerências. Quando Bill quis persuadir os AAs
a usarem LSD, em 1956, argumentou que “tudo o que possa ajudar alcoólicos é bom
e não deve ser descartado. Era preciso explorar técnicas que ajudassem homens e
mulheres, que não se adaptassem a A.A. ou a um outro caminho, a se recuperar”.
Mas nessa ocasião, tanto os achados de Wylie quanto os de Jung, além de não
serem aceitos, seriam desprezíveis. Já naquela outra ocasião, a LSD não só
seria plenamente aceitável, como até teria recompensas divinas pelo seu uso,
como ele afirmou categoricamente. Enfim, se fosse para o interesse de Bill, o
demoníaco se tornava divino, e vice versa. O que fosse bom para os outros, mas
não o fosse para Bill, era abjeto. Incongruências e incoerências.
Voltando ao texto de Bill, num dos trechos que consideramos ser ponto
importante do seu artigo, ele afirma que o que mais lhe chamou a atenção foi a
referência quanto à experiência espiritual “ao estilo Jung” e à “técnica científica”.
Bill colocou os termos jocosamente entre aspas e passou a criticar bem ao seu
estilo, com ingredientes irônicos e depreciativos. A técnica ao estilo Jung, de
caráter científico, não merecia crédito, mesmo porque para ele, o mundo
científico cada vez se dobra em reconhecimento ao A.A., e este não reconhece o
valor da ciência. Esse enaltecimento dos dogmas A.A. e desprezo pela ciência
foi outro ponto marcante que Bill introjetou na irmandade que perdura até os
dias atuais[1]: seus ensinamentos divinizantes
em detrimento do conhecimento científico.
O mais impressionante de tudo isso é que aqui ele está criticando
mordazmente um dos pés do tripé do A.A., uma de suas sustentações, um dos
preceitos fundamentais, nas suas próprias palavras. Pois foi ele quem disse
para o mundo, através da carta de próprio punho a Jung,[1] datada de 23/01/1961, que
mencionamos aqui anteriormente: esta carta, segundo a biografia, era a
formalização da gratidão de Bill àqueles que ele considerava responsáveis pela
criação da Irmandade A.A. E no primeiro lugar da lista estava Carl Gustav Jung,
conforme já vimos. Num trecho da carta está escrito assim: “Esta sua posição
sincera e humilde foi, sem dúvida, a primeira pedra em que fundamentamos a
nossa Sociedade”.
As contradições aterradoras declaradas documentalmente, que aqui
expomos, mostram o que seja realmente a personalidade de Bill: quando escreveu
este artigo molestando o Sr. Wylie (setembro de 1944), publicado na Revista Grapevine,
Bill mostra indiscutivelmente que ignora por completo Jung e suas teorias
(possivelmente procurou se inteirar sobre Jung e suas teorias quando foi
escrever a carta). Jung representava um desafio ao A.A. Bill ignora também que
Rowland estivera com Jung, e que este mesmo Rowland no futuro seria considerado
o “mensageiro divino” que trouxe da Suíça de Jung a “pedra angular” que tornou possível
a edificação de A.A. (nove anos antes de escrever este artigo). Na carta enviada
a Carl Jung em 1961, Bill logo no primeiro parágrafo, informa ao seu missivista:
“com certeza ignora que uma conversa que manteve com um de seus pacientes, Mr.
Rowland, nos idos de 1930[1], tornou-se uma das regras
fundamentais da nossa Sociedade”, nos seus dizeres, a primeira pedra. Então
como é que em 1932, o que era uma regra fundamental e a primeira pedra da
construção de A.A. (que foi fundado em 1935) ele desconhecia e repudiava em
1944? Ele relatou a Jung o que não era verdade. Evitamos até aqui uma palavra
que poderia dar um sentido pessoal, ou mesmo não bem estabelecida dentro do
âmbito cientifico, mas não é impropério dizer que há nuances de cinismo nessas
edificações imaginárias. Puro imaginário intelectual.
Tal constatação corrobora nossas informações anteriores de que ele,
Bill, não conhecia Rowland, e que este não fora membro de A.A., e portanto, ele
não teria passado nada para Bill, passou sim para Ebby[1], e este para Bill. Mas Bill queria “forçar a barra”
e dar a entender a Jung (e para todos) que foi Rowland que lhe trouxera as boas
novas diretamente de Jung, possibilitando assim agregar ao A.A. parte do
patrimônio intelectual do psiquiatra. Desta forma, vinculou-se a irmandade de
A.A. às teorias de Jung, com o fito de dar-lhe maior credibilidade e publicidade[1],
já que naquela época Jung estava em evidência mundial. De
duas uma: 1) Jung teria caído na capciosa armadilha de Bill fragorosamente,
tanto é que na resposta a Bill, ele mostra isso logo de cara ao dizer: “O
diálogo que mantivemos, ele e eu, e que ele muito fielmente lhe transmitiu
[...]”. Aqui, no jogo de palavras sem nenhuma veracidade, já que o que Jung
disse a Rowland, segundo as palavras (presumidamente mais confiáveis) deste,
foram bem diferentes, uma vez que Jung não aceitou retomar o tratamento de
Rowland, que foi seu paciente. Além do mais ainda mandou Rowland procurar por
um milagre; ou 2) Jung teria aceitado o que Bill lhe disse, como sendo palavras
de Rowland, que teriam se originado do diálogo entre o médico e seu paciente.
Em outras palavras, Bill inventou uma mensagem de Jung que Rowland teria lhe
transmitido, e por sua vez, Jung disse que a mensagem (que ele não elaborou)
foi transmitida com fidelidade ao Bill – um mentiu envolvendo o outro, e o
envolvido disse que a mentira era uma verdade. Como poderemos colocar em dúvida
a conclusão de Noll sobre Jung, de que este falseava? E sobre Bill, é possível
não vê-lo materializado no mesmo adjetivo? Para bem definir essa dupla, caberia
aqui a expressão “a tampa e o balaio”, que em nossa região, significa que ambos
são da mesma feitura e complementaridade.
Nesse ponto de nossa narrativa, cabe salientar dois pontos importantes.
1) Quando Jung, desacreditando de Rowland pela sua derradeira recaída, lhe
comunicou que não aceitava a retomada do tratamento que ele pedia, aconselhou-o
a procurar uma religião. Bill reportou esse conselho com insinuante semântica:
“tornar-se o sujeito de uma genuína experiência espiritual ou religiosa [...]
Mas preveniu-o de que conquanto tais experiências tivessem acontecido a alguns
alcoólicos, elas eram comparativamente raras”[1].
O teor da frase que Bill usou para reportar o conselho dado por Jung não pode
ser confirmado, porque na resposta de Jung, este ressalvou assim: “A razão pela
qual não pude dizer tudo foi que naquela época eu tinha que ser cuidadoso com
tudo o que dizia. Eu havia descoberto que estava de todas as maneiras mal
interpretado”.
Nem sabemos se Jung realmente falou de experiência espiritual nos
termos que Bill reporta, pois as práticas da psicologia analítica que Jung
empregava em seus pacientes, e que já abordamos exaustivamente, eram bem
diferentes disto. Apenas o que fica claro é que Jung disse para Rowland - de
quem queria se ver livre – é que ele era um caso perdido e que deveria procurar
por um milagre. Na verdade, o que Rowland fez depois disso (e não se sabe a
quantas bebedeiras depois) foi o que muitos dependentes fazem ao chegar ao
fundo do poço: procurar uma religião para infrutiferamente resolverem seus
problemas da dependência. Tal procedimento quase sempre redunda em frustração,
uma vez que o sucesso nessas incursões é uma exceção à regra, como o foi no
caso dele, Rowland. Foi bem provavelmente assim que Rowland chegou até aos
Grupos Oxford, onde participava de uma equipe de abordagem a dependentes de
álcool. Como era amigo de Ebby, abordou-o e o levou para um dos Grupos Oxford.
Bill, por intermédio de Ebby, foi para um desses grupos também, e provavelmente
não era o grupo que Rowland frequentava, pois Bill nunca mencionou seu nome.
Não mencionou nem lhe dedicou uma única linha em seus escritos, o que certamente
deveria ter feito, se fosse verdadeira a participação de Rowland como
mensageiro de Jung, como Bill matreiramente quer deixar a entender. Só veio a
mencionar o nome deste personagem quando urdiu toda essa história e escreveu
para Jung. 2) Jung caiu ou se deixou cair na urdidura de Bill, pois ao aceitar
o jogo, possivelmente vendo aí uma oportunidade, tirou proveito do ensejo.
Aproveitou para não só salientar sua teoria “abraçada” por A.A., como também
para inventar a origem espiritual da doença e imiscuir-se em campo alheio aos
seus conhecimentos: a dependência de álcool. Desta forma, criaram mais um mito
(muito ao feitio dos dois) e se potencializaram em seus objetivos, objetivos
esses profundamente danosos para a humanidade, que só agora recentemente,
Richard Noll denuncia (pelo menos quanto a Jung), de forma brilhante e
inquestionável. No caso de Bill até constam muitas denúncias esparsas, como no
caso dos jornalistas Álvaro Opperman, que veremos nas próximas páginas, e de
Luiz Edmundo que veremos bem mais na frente, e ainda, as muitas denúncias do
site orange. Da mesma forma que Noll, estamos também denunciando um erro
histórico, que neste caso, foi perpetrado por Bill, useiro e vezeiro em induzir
a humanidade a engano.